domingo, 24 de maio de 2009

O Fenómeno.

Aquele fenómeno foi um fenómeno nunca visto. Já tinham ocorrido fenómenos um bocado semelhantes. Mas apenas um bocado. E há que considerar que semelhante já é uma palavra sem sentido absoluto. É por isso que “semelhante” existe. Se assim não fora teríamos apenas o “igual” e o “cem por cento”. Igual para ser usado pelos poetas. Cem por cento para ser usado pelos matemáticos, pelos cientistas.

Mas o fenómeno que é este fenómeno nunca tinha acontecido. A única coisa que já ocorrera fora algo de um bocado parecido. E note-se que parecido é igual a semelhante. E se é a palavra que agora se usa é tão só para obedecer às regras da estética da língua que é esta língua: não ser repetitivo. Não ser repetitivo no que se diz. Não ser repetitivo no que se pensa. Não ser repetitivo nas palavras. Sobretudo isso: não ser repetitivo. Jamais ser repetitivo.
E era isso mesmo que este fenómeno não era: repetitivo. Nunca acontecera. E como nunca acontecera não podia sê-lo: repetitivo.

É certo que já haviam ocorrido movimentações. Movimentações de povos e culturas e civilizações. Isso já. Mas isto não: isto desta forma nunca acontecera. As movimentações levaram a instalações e a destruições. Os romanos fizeram isso: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os bárbaros: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os Zulus: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os Incas e os Maias e os caucasianos em geral: sobretudo os caucasianos em geral. Todos. Todos sem excepção. Todos se movimentaram e instalaram e destruíram o que estava.

Mas isto? Isto não. Isto nunca acontecera. E ninguém sabe explicar uma explicação para o porquê disto. Até porque isto aconteceu duma forma que ninguém esperava. Não foram os Estados que combinaram. Não foram os partidos que combinaram. Não foram Organizações Não Governamentais que combinaram. Nada! Nada mesmo. Absolutamente nada foi combinado.
Foi tudo repentino e sem planeamento. Mas aconteceu como se fosse tudo previsto e planeado. De repente. De repente as pessoas começaram a deslocar-se. E não foram as pessoas, pessoas. Foram as pessoas: países. Foram as pessoas: culturas. Foram as pessoas: civilizações. Todas. Todas começaram a deslocar-se. E sninguém consegue explicar uma explicação. E se ninguém consegue explicar uma explicação: é porque tudo foi espontâneo.

Espontâneo e repentino. Repentinamente. Repentinamente deixou de haver espanhóis em Espanha. Repentinamente deixou de haver portugueses em Portugal. E americanos na América e russos na Rússia e franceses na França e ingleses na Inglaterra, nem mesmo Sua Magestade. Todos os povos: de repente todos os povos deixaram de existir no território que até aí fora o território desses povos.

Desapareceram? Foram destruídos por outros que se movimentaram e instalaram? Não. E isso é o mais estranho. Os espanhóis, por exemplo: os espanhóis espalharam-se por todos os territórios excepto pelo território chamado Espanha. E os portugueses por todos os territórios excepto pelo território chamado Portugal. E os americanos e os chineses e os franceses e os indianos e os ingleses, até Sua Magestade que agora ocupa um apartamento de três assoalhadas no território conhecido como Tibete.

O que terá provocado isto? Ninguém sabe. Foi algo de tão espontâneo como espontâneo é o fetiche sexual dos salmões e das enguias e das andorinhas e das cegonhas. E porque foi assim espontâneo: os sociólogos não conseguem explicar o fenómeno. Talvez haja uma necessidade de mudança na espécie. Talvez. Talvez uma necessidade que ocorra em cada quarenta mil anos. Talvez. E talvez um dia os sociólogos sejam capazes de ter tudo muito bem estudado. Tudo sob uma matriz: uma explicação cabal: racional: científica. Talvez demorem anos. Talvez outros quarenta mil anos para descobrirem essa descoberta. E quando descobrirem: talvez outro fenómeno ocorra. Não este. Outro qualquer. Outro que venha a ser um fenómeno até aí nunca visto. Um fenómeno que venha a ser um bocado semelhante a outros fenómenos até aí entretanto ocorridos. E há que considerar que "semelhante" já é uma palavra sem sentido absoluto. E nesse dia os sociólogos ficarão novamente sem resposta.

Talvez seja isso. Talvez a espécie queira ser o que é: uma espécie. Nada para além duma espécie.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sunflower and butterfly

Who knows.
One day you'll be in a search-moment.
who knows.
One day I'll be in a search-moment.
And your search-moment will be.
And my search-moment will be.
Both search-moments will .
Will be simultaneous search-moments.
And when search-moments are simultaneous.
They are not just search-moments.
They are magic moments.
Sunflower and butterfly moments
When will I.
When will you.
When will we have such a magic moment?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Na Feira do Livro de Lisboa

Ontem estive na Feira do Livro de Lisboa. “Os Parricidas” foi o livro do dia no pavilhão da editora Civilização e portanto ontem foi dia de autógrafos.

Também aproveitei para regressar com mais uma dezena de livros. E gostei da feira.

O que mais me chamou a atenção não foram os livros e o público e os autores. O que mais me chamou a atenção foi o que pode parecer um pormenor. Não sei porquê: tenho esta tendência: reparar em pormenores. Mas como tenho a mania das grandezas faço-o vendo no que é aparentemente pequeno aquilo que o que é aparentemente pequeno tem de grande.

Uma rapariga. Estava a distribuir um papel. Um papelito. Um papelito escrito a preto sobre o branco. Estendeu-me um. Ainda tentei evitá-la: parecia-me o anúncio de mais um astrólogo ou quiromante ou adivinho. É possível que já ninguém repare nos papéis que os astrólogos e quiromantes e adivinhos nos deixam nos vidros e nas frinchas das portas dos carros. E sendo assim: os astrólogos e quiromantes e adivinhos poderiam estar a mudar de estratégia: poderiam estar a distribuir os seus papéis na feira do Livro de Lisboa. E foi com esta ideia que aceitei receber o papel que a rapariga me estendeu. E ainda eu o não tinha na minha mão e já com os olhos buscava o cesto de papéis mais próximo.

Ainda assim tive tempo de olhar para aquela folha branca com caracteres pretos.

E não: não era o papel dum astrólogo ou quiromante ou adivinho. Era um anúncio é verdade que era um anúncio. Um anúncio artesanal, é certo. Mas um anúncio. Começava com um “EVITE” à laia de título. E quando vi o “EVITE” do título: já eu estava novamente à procura do dito cesto de papéis. Depreendera que se seguiria qualquer coisa como “…a queda do cabelo” ou “…a fadiga sexual”.

Sorte que o cesto de papéis não estava próximo. E enquanto caminhava li instintivamente a linha que se seguia à do “EVITE”: “Evite que a arte de encadernação se extinga.” Parei. Aquela linha convenceu-me a ler a seguinte: “Que uma encadernadora seja fechada por falta de trabalho.” E desta para a seguinte: “Que três famílias acabem no desemprego.”

Agora eu já queria ler tudo o que faltava: “A encadernadora foi fundada em Agosto de 1.970 (assim mesmo: em Agosto de 1.970) por João F. Augusto. Hoje com 82 anos continua se esforçando pra levar em frente a arte de encadernação.” E depois: “Trabalhando com perfeição e honestidade fazemos encadernações simples a luxo e restauros.” Mudança de linha: uma só palavra: “AJUDE”. E prossegue: “Precisamos no mínimo mais 50 encadernações por mês pra manter a loja e funcionários. Colabore trazendo um livro para encadernar.”

Naquele momento eu já não estava na feira do Livro de Lisboa. À minha frente imaginava o Sr. João F. Augusto. Imaginava-os com oitenta e dois anos. E agarrado a livros que contam histórias ou que falam de filosofia ou que falam de ciência. Milhares de livros até aos 82 anos. Fiz contas de cabeça: o Sr. João F. Augusto teria perto de quarenta anos em 1970 quando abriu A Encadernadora. Quarenta anos. O que o terá feito mudar de vida? O que o terá feito largar o que estava a fazer e abrir a encadernadora? Que sonhos teria? Que realização prosseguia? E fê-lo: largou o que estava a fazer e abriu A Encadernadora.

Quantas pessoas terão levado os seus livros à A Encadernadora? Relíquias de família que queriam restaurar. Ou livros aos quais queriam dar nova dignidade. O que significariam esses livros para essas pessoas? Que memórias lhes trariam? E tudo isso ali: na oficina que o Sr. João F. Augusto fundou em Agosto de 1.970. assim mesmo como está: 1.970.

Para mim e agora o Sr. João F. Augusto já não era o Sr. João F. Augusto. Era uma metáfora: uma personagem. Um símbolo da voragem da história. Da autofagia com que nos consumimos: até ao tutano a consumirmos o outro: convencidos de que o nosso próprio tutano esteja a salvo. Não está!

É literatura pura o Sr. João F. Augusto. E a história que dele me veio lembrou-me um outro personagem: esse oleiro de A Caverna. Eu não sabia se o oleiro de Saramago existira ou não na realidade. Mas sim, ele existe. Se outro nome não tinha tem o de João F. Augusto.

E já agora, se tiverem livros para restaurar ou para dignificar: o Sr. João F. Augusto precisa de mais cinquenta encadernações por mês para manter a loja e os funcionários. E o Sr. João F. Augusto está em Lisboa na Rua Infantaria 16, nº 22. E tem telefone: 213855068. E tem até email. alpendrepintor@hotmail.com.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A casa de brincar.

Aquele espaço era um espaço para crianças. Era um espaço para ensinar. Mas era também um espaço para brincar. Aquele espaço estava dividido em várias áreas: cada uma destinava-se a uma diferente actividade. Numa dessas áreas: há um estaleiro: obras. É um estaleiro a brincar de obras a brincar: os tijolos são em esponja e servem para preencher as paredes da casa e o guindaste tem uma manivela que serve para que as crianças façam subir aqueles tijolos de brincar até ao piso de cima daquela obra de brincar.

As crianças. As crianças são umas duas dezenas. Algumas têm quatro anos e outras têm cinco e outras têm seis.

A obra é um caos. Aparente: aparentemente ninguém coordena o trabalho a fingir daquelas crianças. Mas não. Uma criança dá freneticamente à manivela do guindaste: faz subir tijolos em esponja que outros receberão e outros colocarão. Ninguém coordena as crianças. Ninguém. Mas os tijolos continuam a ser colocados no guindaste e a subir à plataforma e a ser retirados e a ser depois colocados nas paredes da casa.

Uma harmonia.

De vez em quando há disputas:

-“Quem dá à manivela sou eu!”
Ou:

-“Estes tijolos são meus!”

E das disputas sai sempre um resultado: ou continua quem estava ou fica quem entra. E a máquina continua a funcionar. A manivela roda independentemente de quem a roda. Os tijolos são colocados nas paredes independentemente de quem os coloca.

Saberão as crianças? Saberão as que disputam a manivela? Saberão as que disputam os tijolos? Saberão que tudo funciona independentemente de quem faz funcionar?

Algumas crianças parecem fora desta harmonia. Vagueiam por aquele estaleiro de brincadeira. Pegam nos tijolos de borracha tão só para os atirar ao ar. Quem serão estas crianças? Serão as desinseridas? Ou serão as únicas que sabem?
A máquina funciona independentemente de quem a faz funcionar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Bolachas de Araruta

Estava sem inspiração. Não me apetecia escrever, pronto: falta de inspiração é a forma sublime de preguiça. Ou de preguiça ou da vontade da mente em mudar. Vivemos do que à mente se oferece oferecer-nos. E a mente sabe disso. E como sabe: tem caprichos. Recusa-se a dar-nos aquilo que precisamos que ela nos dê. Recusa-se a menos que lhe demos aquilo que ela quer. E a minha quer mudança: está sempre a pedi-la. E como é mudança o que quer: é mudança o que tenho de lhe dar. Pelo menos se quero que ela me dê o que eu dela quero: letras unidas em palavras e palavras unidas em frases e frases unidas em ideias: livros.

Desta vez fui para o Gerês. Já estive neste hotel: uma quinzena com a minha avó. Teria eu seis anos? Por aí. O Hotel foi recuperado. Mas é o mesmo hotel. O mesmo apesar de já lhe terem dado diversos nomes. Foi Pensão Maia e ainda os nossos avós não tinham nascido. Depois fizeram-lhe obras e chamaram-lhe “Grande Hotel Maia” e já os nossos avós poderiam ter nascido. E agora fizeram-lhe mais obras e chamam-lhe “Hotel Águas do Gerês” e já os nossos filhos nasceram. Teve vários nomes, portanto: o pobre do hotel. Mas continua a ser o mesmo. Mudaram-lhe a cara e o aspecto mas a intimidade é a mesma. Felizmente que “Grande Hotel Maia” foi escrito sobre a pedra do edifício quando de Pensão Maia se fez Grande Hotel Maia. E por isso bem podem os idealizadores do Hotel Águas do Gerês chamar-lhe Hotel Águas do Gerês: o “eu” do hotel continua bem marcado. Porque de pensão Maia para Grande Hotel Maia: há apenas uma passagem da infância para a adolescência. Mas de “Grande Hotel Maia” para “Hotel Águas do Gerês”: poderia haver uma perda de identidade.

É estranho voltar ao hotel onde passei uma quinzena da minha infância. No actual espaço tento recriar o antigo. Vejo a recepção actual com os sentidos e com a mente reconstruo a velha recepção. Introduzo o cartão que me abre a porta do quarto e imagino o pesado porta-chaves de onde antigamente pendia a chave que abria essas mesmas portas. Entro e em vez da mobília em sucedâneos de madeira que agora lá está: vejo as duas camas de ferro que antes lá estavam. Talvez este seja até o quarto: aquele onde há tanto tempo fiquei com a minha avó. Lembro-me de que dava para a rua principal e lembro-me de que era no primeiro piso. E este quarto que é agora o meu quarto: dá para a rua principal e é no primeiro piso.

Dirijo-me à janela. Abro-a. De repente tudo recuou: mais de três décadas. E vejo um rapazinho que atravessa a estrada. E esse rapazinho sou eu. Fecho a janela. Saio do quarto. Escadas: quero ir pelas escadas. Recepção. Naquele tempo havia sofás em volta de mesas baixas. E os aquístas (era assim que lhes chamavam) reuniam-se em torno das mesas. E conversavam. E faziam jogos sociais.

Procuro um sofá. Sento-me. Tenho uma lembrança estúpida: não percebo porque vem e nem percebo ao que vem: bolachas de araruta! Bolachas de araruta? E agora sim. Agora já sei porque veio e ao que veio, a lembrança. A minha avó comia bolachas de araruta. Meu Deus! Bolachas de araruta. Bolachas de araruta é mesmo coisa de avó. Avó de quarentão, diga-se: que já nem as avós dos que são hoje adolescentes comem ou comeram bolachas de araruta. Acho que já nem se vendem, as bolachas de araruta. Pelo menos já nem me lembro de as ver.

Mas agora que estou aqui. Aqui neste hotel. Agora sim! Agora tenho uma súbita vontade de comer bolachas de araruta. Lembro-me bem delas e de como as comia. Eram triangulares e tinham as pontas levantadas e eram tostadas e duras dum lado e moles e carnudas do outro. E eu gostava de lhes comer primeiro a parte carnuda. E só depois a parte tostada. Bolachas de araruta. Apetecia-me tanto comer aqui e agora uma bolachinha de araruta!

E repentinamente percebo. Percebo algo que já intuira sem nunca ter percebido. Proust. “À la Recherche dum temps perdu”. A célebre passagem da madeleine:

Et tout d’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût, c’était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l’heure de la messe), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m’offrait après l’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La vue de la petite madeleine ne m’avait rien rappelé avant que je n’y eusse goûté; peut-être parce que, en ayant souvent aperçu depuis, sans en manger, sur les tablettes des pâtissiers, leur image avait quitté ces jours de Combray pour se lier à d’autres plus récents; peut-être parce que, de ces souvenirs abandonnés depuis si longtemps hors de la mémoire, rien ne survivait, tout s’était désagrégé; les formes - et celle aussi du petit coquillage de pâtisserie, si grassement sensuel sous son plissage sévère et dévot - s’étaient abolies, ou, ensommeillées, avaient perdu la force d’expansion qui leur eût permis de rejoindre la conscience. Mais, quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des autres, après la destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.”

Proust precisou da madeleine e da recordação da madeleine para perceber o significado da madeleine e da recordação da madeleine: da sua infância, do seu “eu”. E eu precisei da bolacha de araruta e da recordação da bolacha de araruta para perceber outra coisa: só percebemos depois de sentirmos. Já li Proust e nem sei quantas vezes já li esta passagem e já tinha intuído a sua importância. Mas percebê-la? Para a perceber tive de a sentir. E agora sim. Agora e graças a uma recordação de bolachas de araruta: sei o que Proust quis dizer e acho que sei até o que Proust sentiu.

É triste para quem escreve: só depois de vivida é que a vida se torna sentida.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O homem cão.

Um escritório. Mais ou menos quinze pessoas no mesmo espaço: mais ou menos quinze em mais ou menos quinze secretárias. Estão separadas por separadores, as secretárias: muralhas. Dentro de cada separador-muralha todas têm os mesmos artefactos: um ecrã e um teclado e um rato. E também uma ou outra manifestação de pessoalidade: uma foto dum filho ou dum namorado ou uma recordação de algo: um esquiço autobiográfico que seja capaz de lhes catapultar a memória dali para fora.

Num dos cantos há uma câmara. Não é oculta, a câmara. Se fosse oculta não cumpriria a sua função: fazer com que as mais ou menos quinze pessoas que ali trabalham saibam que a câmara lá está: uma espécie de suplemento à avaliação com que no final do ano saberão do prémio a que têm direito.

Lá fora há um jardim. Está vazio. Vazio excepto pelo rapaz e pelo cão que nele brincam. O rapaz tem uma bola amarela e atira-a e o cão vai buscá-la e trá-la e devolve-a. E quando cão devolve a bola ao rapaz: o rapaz dá-lhe uma ordem e o cão senta-se e depois o rapaz dá-lhe outra ordem e o cão deita-se. E se o cão se deita e se senta mal o rapaz lhe ordena que se sente e se deite: o rapaz volta a atirar a bola e o cão volta a ir buscá-la e a trazê-la e a sentar-se e a deitar-se. Mas quando o cão não se senta e não se deita assim que o rapaz lhe ordena que se sente e se deite: o rapaz não lhe atira imediatamente a bola e obriga-o a ficar mais tempo sentado e deitado. E é assim que quando o cão é canino: o cão recebe imediatamente o seu prémio em bola atirada. E é assim que quando o cão é humano: o cão tem de sofrer mais tempo sentado e deitado antes que receba o seu prémio em bola atirada.

Começa a chover no jardim onde está o rapaz e onde está o cão. Voltemos ao escritório.
O escritório está na mesma: as mais ou menos quinze pessoas nas mais ou menos quinze secretárias. As mais ou menos quinze pessoas com os mais ou menos quinze computadores. As mais ou menos quinze pessoas com os mais ou menos quinze separadores-muralha. As mais ou menos quinze pessoas com a câmara que as grava. A câmara que gravando-as contribui para a sua avaliação. A avaliação que avaliando-os contribui para o estabelecimento do prémio que irão receber no final do ano ou talvez a promoção, até.

Numa das secretárias está um homem. O homem é gordo e tem uma barba rala e a camisa branca e a gravata desapertada assim como desapertado está o ultimo botão da camisa branca. O homem tecla no teclado e olha para o ecrã e tecla no teclado e olha para o ecrã. É um teclar domesticado assim como é um olhar domesticado: das teclas para o ecrã e do ecrã para as teclas e novamente das teclas para o ecrã e novamente do ecrã para as teclas. Os olhos estão avermelhados. Não é um vermelho nervoso: é um vermelho de desânimo. E é com esse olhar de desânimo avermelhado que de vez em quando quebra o ciclo ecrã-teclas-ecrã. Quebra-o com uma mirada ao maço de cigarros que tem pousado sobre a secretária.

E a câmara continua na sua função: grava.

E lá fora já parou a chuva e já está sol e o rapaz do cão já está novamente a atirar a bola ao cão e a esperar que ele lha traga e a mandá-lo sentar e a mandá-lo deitar.

O homem do olhar de desânimo. O homem do olhar desânimo levantou-se.

E a câmara a gravar.

Num dos cantos da sala há uma impressora e o homem do olhar de desânimo dirige-se para a impressora. Agora que está em pé e caminha vê-se que tudo no homem de olhar de desânimo coincide com o olhar de desânimo do homem de olhar de desânimo: a gravata desapertada e a camisa aberta no último botão e os ombros caídos e o andar lentamente apressado. Tudo. Tudo no homem de olhar de desânimo está de acordo com o desânimo do seu olhar.

A impressora: a impressora regurgitou duas folhas. E o homem de olhar de desânimo já chegou à impressora. E já pegou na regurgitação. E já viu que as folhas estão pretas. E já as amaçou. E já as atirou para o cesto dos papéis. Foi sem expressão no rosto que o fez, para além da expressão que já lhe conhecemos: a de desânimo. E agora o homem de olhar de desânimo já voltou à sua secretária. E sem se sentar dobrou-se sobre o teclado. E no teclado repetiu uma ordem anteriormente dada. E a impressora retornou à regurgitação. E o homem de olhar de desânimo retornou à impressora. E retornado que está: já verificou que estas também saíram pretas. E já as amaçou. E já as atirou para o cesto de papéis. E já voltou à secretária. E já se dobrou sobre o teclado. E já repetiu a ordem. E já tudo se repetiu e repetiu e repetiu.

A câmara: essa continua a gravar.

Lá fora: lá fora chove novamente. E novamente o cão e o rapaz do cão pararam com a brincadeira de atirar a bola e já se abrigaram.

O homem de olhar de desânimo não sabe que lá fora já choveu e que já parou de chover e que já chove de novo: não reparou. Em vez de perder tempo a reparar: o homem de olhar de desânimo resolveu alterar a estratégia e está parado em frente da impressora e abre-a: verifica se há algum problema com o recipiente da tinta. E talvez agora haja, se antes não havia já: o recipiente teve uma espécie de espirro e a camisa do homem de olhar de desânimo está agora manchada de preto. A camisa e a gravata e até a cara. É certo que homem de olhar de desânimo deu um salto para trás quando a impressora espirrou: um reflexo desnecessário: apanhou em cheio com a espirração.

Manchado de preto o homem de olhar de desânimo caminha uma vez mais para a secretária. Daquele ângulo a câmara só o grava de costas. E porque só o grava de costas: os olhos que estão por detrás daquele olho ficam sem saber: o olhar do homem de olhar de desânimo já não é um olhar de desânimo. Nada disso: o olhar do homem de olhar de desânimo é agora um olhar de desespero. Mas porque a câmara não vê o olhar de desespero do homem de olhar de desânimo: os olhos que estão por detrás da câmara não despoletam qualquer sinal de alerta.

Agora sim. Agora os olhos por detrás da câmara já podem ver a atitude desesperada do homem que é habitualmente o homem olhar de desânimo. Mas já é tarde de mais. Agora já não há função profilática no registo que a câmara faz: agora o registo já tem meramente a função de registar. Regista a atitude do homem que tinha olhar de desânimo.

Um gesto do braço direito e o homem que tinha olhar de desânimo varreu o tampo da secretária: teclado e maço de cigarros e uma lata de salsichas reciclada a dizer “Ao melhor pai do mundo” e que estava cheia de lápis e de canetas e de clipes: já está tudo no chão. E agora o homem que tinha olhar de desânimo encara o ecrã. Encara-o já sem a postura de desânimo: os ombros não estão encolhidos mas abertos e as costas já não estão curvadas mas direitas e o olhar já não é vermelho de desânimo mas vermelho de desespero. E as mãos: as mãos dirigem-se ao ecrã e puxam-no e ao puxá-lo arrancam-lhe os fios que umbilicalmente o ligavam à inteligência central.

E a câmara continua a gravar.

E lá fora não sabemos o que está a acontecer com o cão e o rapaz do cão. Não sabemos e nem queremos saber. Não agora: agora que o clímax é cá dentro.

Junto à impressora há outra máquina: uma fotocopiadora. E é para a fotocopiadora que o homem que tinha olhar de desânimo segue com o ecrã nas mãos. Se olhássemos para o olhar do homem que tinha olhar de desânimo e se depois olhássemos para o ecrã que o homem que tinha olhar de desânimo traz nas mãos: estranharíamos porque o monitor não sangra.

No escritório todos os colegas do homem que tinha olhar de desânimo se levantam. E olham para ele. E agora que o homem que tinha olhar de desânimo está junto à fotocopiadora: todos os que olham para o homem que tinha olhar de desânimo estão de frente para a câmara.

E a câmara continua a gravar.

E como a câmara continua a gravar: a câmara grava o olhar de todos os que olham para o homem que tinha olhar de desânimo. E nesse olhar que é agora de surpresa adivinha-se um olhar que era antes de desânimo: um desânimo fossilizado mesmo quando é momentaneamente substituído por surpresa.

O homem que tinha olhar de desânimo. O homem que tinha olhar de desânimo sente-se observado por aqueles mais ou menos vinte e oito olhos. Esses mais ou menos vinte e oito olhos que o olham com um momentâneo olhar de surpresa. E o homem que tinha olhar de desânimo volta-se para eles. E fita-os: o olhar de desespero do homem que tinha olhar de desânimo é agora olhar de raiva. E todos sentem a raiva daquele olhar. E todos regressam ao ar de desânimo. E todos se sentam. Sentam-se como se nada se passasse: atendem os telefones e teclam as teclas e miram os ecrãs. E o homem que tinha olhar de desânimo já perdeu o olhar de raiva e está a perder o olhar de desespero e está lentamente a voltar a para o olhar que lhe deu nome. Mas o desespero ainda é suficiente para que abra a tampa da fotocopiadora e lhe coloque o monitor ensanguentado em cima e para que carregue na tecla “Copiar”. É várias vezes que carrega nessa tecla: primeiro com um murro e depois com brusquidão e depois suavemente, duas vezes suavemente. E conforme passa do murro com que carregou para o suavemente com que está a carregar: o homem perde o olhar de raiva e passa para o olhar de desespero e finalmente regressa ao olhar que é o seu olhar: o olhar de desânimo.

O homem do olhar de desânimo olha à volta de si. Olha à volta de si como se olhasse para si: como se caísse em si. Os colegas continuam a trabalhar: viram-lhe o olhar de raiva e por isso trabalham como se nada se passasse. E o homem de olhar de desânimo já caiu em si: já dobrou a coluna e já encolheu os ombros e até já ajeitou a gravata. Agora levanta os olhos. Levanta-os para o canto onde a câmara grava tudo. O homem de olhar de desânimo sabe isso mesmo: sabe que a câmara grava tudo. Gravou-o antes assim como o grava agora: grava-o também agora que tem aquele olhar de desânimo e aquele ar ridículo com a camisa e a gravata e a cara manchados com o preto espirrado pela impressora. Ficou tudo registado: tudo.

O homem pega no monitor. Regressa ao seu lugar. Apanha os lápis que espalhara pelo chão. Mete-os dentro da lata de salsichas reciclada a dizer “Ao melhor pai do mundo”. Antes de pousar a lata sobre a secretária lê-a: um ténue sorriso. Apanha o teclado que também atirara para o chão. Pega nos fios do ecrã. Põe-se de joelhos: é de joelhos que tem de se pôr para se voltar a ligar à inteligência central. Senta-se. Um suspiro. Retoma o trabalho. O homem de olhar desanimado já retomou o trabalho.

A câmara. A câmara continua a sua função: grava. A câmara sabe que o homem de olhar de desânimo lá está. E o homem de olhar de desânimo sabe que a câmara lá está. E o homem trabalha: com afinco. E olha para a lata de salsichas a dizer “Ao melhor pai do mundo”. E continua a trabalhar com afinco. O homem de olhar de desânimo quer fazer tudo para que no final do ano a câmara se esqueça daquilo que a câmara acaba de gravar.

Lá fora. Lá fora voltou o sol. E o rapaz do cão continua a atirar a bola para que o cão a busque. Mas é só quando o cão se senta e se deita quando ele lhe diz que se sente e se deite. É só quando assim se comporta o cão que o rapaz do cão atira a bola para que o cão a busque.

E a câmara grava. E a câmara grava.
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Inspirado num vídeo que recebi:

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Inconsciência de "não ser"

Podemos recuar a mais do que Freud para tirar uma conclusão: há muito tempo que procuramos no inconsciente a fonte do mal-estar de cada ser humano. Será que o nosso problema é o que temos de inconsciente ou o que temos de consciente? Que conste, o que não tem consciência de ser, não tem também consciência de não ser. E já houve quem dissesse que a questão está aí: no conflito entre ser e não ser.
Talvez fosse altura de virarmos as ciências da psique de pernas para o ar: mudar o actor que faz o papel de vilão.