domingo, 15 de julho de 2012

Resistir é Legítimo

Para salvar uma determinada visão de um determinado modelo económico, matou-se o Estado de Direito Democrático e, por muito que procure outras definições, só encontro uma expressão para o que se passou: Golpe de Estado, os três poderes juntaram-se para dar um Golpe de Estado, acabando com a emanação popular do poder.

Quando os primeiros iluministas começaram a desenvolver a teoria de Contrato Social, ainda que sem contestar o poder do monarca, abriram as portas à ideia de que a fonte da soberania não era divina e intermediada pelo rei, mas popular e, na interpretação mais corrente, intermediada pelos representantes do povo. Numa palavra, prepararam a vinda da Democracia Representativa, dando origem ao Estado de Direito Democrático que aparentemente é o modelo que nos rege.

Na tese do Contrato Social, tal como o definiram Hobbes e Rousseau, aceitamos abdicar de parte do nosso poder individual em troca dum controle do poder individual dos outros. O que se corta a cada um é assumido pelo Estado e as garantias de equilíbrio são-nos dadas pela lei.

Proclamando a base da pirâmide como fonte do poder legítimo, não admira que o pensamento destes “iluministas” desembocasse na Democracia e que, perante a possibilidade de, mesmo em democracia, poder surgir a autocracia, se respondesse com diversos contrapesos institucionais, o mais elementar dos quais é o da separação de poderes. Foi por esta ideia de soberania social que se lutou no século XVIII, foi isto que se foi consolidando no XIX e foi isto que resultou aparentemente consolidado no século XX.

É nesse regime que nos dizem que estamos a viver.

Vem esta contextualização a propósito de que li as recentes declarações do Presidente do Tribunal Constitucional e não pude acreditar no que estava a ver. Rui Moura Ramos falava ao “Público” sobre a declaração de inconstitucionalidade do corte de subsídios aos funcionários públicos: "No entanto, e atendendo a que a execução orçamental de 2012 já se encontra em curso avançado, o Tribunal reconhece que as consequências desta declaração de inconstitucionalidade poderiam colocar em risco o cumprimento da meta do défice público. Por essa razão, o TC restringiu os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, não os aplicando à suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e, ou, 14.º meses, relativos ao ano de 2012”.

Ou seja, um objetivo discutível e meramente conjuntural sobrepôs-se à constituição, sobrepôs-se ao instrumento base da soberania nacional, à materialização do nosso “Contrato Social”. E quem assim decide são precisamente os guardiões máximos do templo.

Que consequências podemos extrair? Que para salvar uma determinada visão de um determinado modelo económico, se matou o Estado de Direito Democrático e, por muito que procure outras definições, só encontro uma expressão para o que se passou: Golpe de Estado, os três poderes juntaram-se para dar um Golpe de Estado, acabando com a emanação popular do poder.

Já não é o regime que se procura salvar mas os seus titulares, nem que para isso tenham de acabar com o próprio titulado. Chegamos a um ponto em que a farsa é assumida e, perante isto, só há uma conclusão para os que continuam a acreditar na Democracia: Resistir é legítimo.

Luís Novais

Ligações:

sábado, 12 de maio de 2012

Tempos de globalização, mas também de confusão. A propósito duma conferência de José Maria Sanguinetti

Sanguinetti pertence a uma geração que toda a vida lutou pela Democracia representativa na América Latina, que acreditou que a Democracia traria liberdade, que traria mais justiça social. Nos nossos dias, esta geração vê-se confrontada com a realidade: o modelo que defendiam é, hoje, hegemónico mas cheio de debilidades e, por outro lado, as massas sem as quais não há a tal intermediação representativa, afastam-se cada vez mais dos seus representantes, não os reconhecendo e tornando-se em seara dos que defendem outras formas de Democracia menos elitistas e mais populares, menos intermediadas e mais diretas.

Esta semana assisti a numa conferência proferida por José Maria Sanguinetti na Universidade de Lima. Duas vezes Presidente do Uruguai (1985-1990 e 1995-2000), nascido em 1936, Sanguinetti entrou para a política em 1963, como deputado. O golpe militar de 1973, que instaurou a chamada ditadura civil e militar, encontrou-o como ministro da Educação. Demitido dessa função após o golpe e privado de todos os direitos políticos em 1976, dedicou-se ao jornalismo, defendendo sempre a causa do Estado de Direito Democrático e, em 1981, fez parte da comissão interpartidária que negociou com os militares a transição pacífica para a Democracia. Em 1985 viria a ser o primeiro Presidente eleito depois de 12 anos de ditadura.

O homem que me preparava para ouvir pertencia, portanto, à geração ideológica que, na América Latina, pugnou pela Democracia Representativa, pelo Estado de Direito Democrático. O meu principal interesse nesta conferência consistia em perceber como é que essa geração perspetiva o momento atual. O tema prometia: “Nuestra America Latina en la Nueva Globalización”. O orador não frustrou a minha expetativa.

O mote para a intervenção, seria dado pela Reitora da Universidade de Lima, que fez um breve discurso prévio: “Vivemos tempos de globalização, mas também de confusão”.

Sangunetti seguiria precisamente esse caminho e, na forma como o fez, mostrou a angustia hoje sentida pelos da sua geração. Primeiro, abordou as incertezas do presente: “já nada resta das certezas do século XX e eu pertenço a uma geração que passou por todas elas. Quando nasci, as opções que se colocavam eram muito claras: a via do fascismo, do liberalismo ou do comunismo. Uns optavam por uma, outros, por outra. Mas não havia dúvida sobre onde nos posicionarmos”. Depois, “ficamos com a opção marxista ou a liberal. O marxismo falhou quando acreditou que o Estado poderia resolver todos os problemas e por isso, nos finais do Sec. XX, parecia que nos restava uma última certeza, uma última opção: o liberalismo”. Mas também esta opção acabaria por mostras as suas debilidades, “antítese do comunismo, o liberalismo, como hoje bem se vê, falhou porque acreditou que o mercado, por si só, poderia resolver tudo”.

Daqui, partiu para a angustia pós-moderna das “verdades” construídas. “Hoje estamos sobre-noticiados e sub-informados. A globalização não é uma ideologia, mas antes o resultado dos desenvolvimentos tecnológicos que nos permitem um acesso permanente à informação, um acervo tão grande que não estamos preparados para digerir”.

Destaco esta última parte, porque me parece ser esta a situação que realmente angustia a sua geração de velhos democratas, formados na tradição jacobina que originaria o modelo da Democracia representativa que hoje é consensual em todo o mundo, ao ponto de até as ditaduras procurarem legitimar-se através duma paródia eleitoral, como recordou Fareed Zakaria (“The Future of Freedom”).

Fiel à sua origem jacobina, a Democracia representativa é, também, um regime aristocrático, onde governam as elites que são eleitas e onde há todo um sistema de filtros que garante que o poder esteja nas mãos dessas elites. Sanguinetti, a sua geração, deverão rever-se no pensamento de Zakaria: os problemas que a Democracia enfrenta, são de excesso de Democracia e de perda de poder das elites. Ou seja, a única forma de defender a Democracia seria, na opinião do conhecido neoconservador norte-americano, com menos Democracia.

Será por isso que, “nesta época de globalização mas também de confusão”, Sanguinetti destaca tanto a questão das tecnologias e do excessivo acesso à informação que elas proporcionam. Ou seja, o povo não está preparado para digerir tanta informação, somos necessários “nós”, os seus representantes, os seus intermediários, para pensar em seu nome e para o dirigir.

A forma como o velho democrata terminou a conferência é bem significativa desta visão. “O homem que transformou o mundo”, diz, “não foi Gorbachov mas sim Deng Xiao Ping. Estava a Perestroika a decorrer quando me encontrei com o líder chinês. Perguntei-lhe: o que pensa de Gorbachov? Está perdido, disse-me, quer fazer a reforma política antes de fazer a reforma económica, esquece-se de que a reforma política come a reforma económica e, depois, esta come aquela”. Sanguinetti elogiaria este pensamento, num reconhecimento implícito do imperativo da elite. Uma posição curiosa dum democrata em relação ao ditador de Tianamen.

Tudo o que ouvia, levava-me a sentir o desconforto da sua geração. Por um lado, o acesso à informação e a fácil partilha, estão a fazer despontar novas reivindicações de Democracia popular e desintermediada. Por outro lado, a Democracia elitista que sempre defenderam, dá provas de não estar consolidada. “Na América Latina”, disse”, “já temos eleições em quase todos os países. Mas não basta isso para fazer uma Democracia. Em alguns países, por exemplo, sofremos dum modelo de autosucessão cesarista, uma eternização no poder, quer seja individual quer seja familiar”. Também a liberdade de imprensa continua a não ser uma garantia, “como se viu recentemente no Equador, onde uma farsa judicial pressionada pelo Presidente, levou a que um jornal fosse multado em 20 milhões de dólares”. Isto para concluir que “a nossa Democracia ainda tem muitas debilidades, inclusive no domínio social. As estatísticas da diminuição da pobreza em alguns países são ilusórias. Esses que saíram da pobreza extrema graças a apoios do Estado, não estão a ganhar autonomia e, se lhes retiram o apoio, regressam à situação anterior”.

Sanguinetti pertence a uma geração que toda a vida lutou pela Democracia representativa na América Latina, que acreditou que a Democracia traria liberdade, que traria mais justiça social. Nos nossos dias, esta geração vê-se confrontada com a realidade: o modelo que defendiam é, hoje, hegemónico mas cheio de debilidades e, por outro lado, as massas sem as quais não há a tal intermediação representativa, afastam-se cada vez mais dos seus representantes, não os reconhecendo e tornando-se em seara dos que defendem outras formas de Democracia menos elitistas e mais populares, menos intermediadas e mais diretas.

Não admira portanto que, para ele e para a sua geração, estejamos a “viver tempos de globalização, mas também de confusão”.

Luís Novais

domingo, 6 de maio de 2012

Narcotraficantes e novos piratas, ou, no que se estão a transformar as indústrias farmacêuticas e da manipulação genética.

Em nome dum capitalismo que já não tem qualquer tipo de ética e que tem poder para levar os Estados a esquecerem que o contrato social serve para proteger os cidadãos e não o lucro de algumas multinacionais, estamos a assistir ao maior e mais impune ato de pirataria alguma vez ocorrido: uns, roubam-nos a capacidade de sermos nós; outros, apropriam-se dum património, o natural, que é de todos.


Ontem fui surpreendido por esta notícia: o consumo de medicação infantil para a concentração aumentou 78% em cinco anos. De acordo com a mesma, um pediatra alertou para a ruptura no fornecimento de uma dessas drogas, com uma afirmação que me estarreceu: “As crianças querem estudar e não conseguem. Sem estudo e concentração não conseguem boas notas. Estão a ser empurradas para o insucesso e até para a reprovação” (ionline)

Dias antes, li algo que, não estando aparentemente relacionado, liguei imediatamente com esta situação. No artigo “A ditadura chegou ao campo” (JN), Daniel Deusdado dá conta de que “o esmagador poder financeiro da indústria química quer multiplicar leis, por todo o Mundo, para impedir os agricultores de serem livres de usar sementes não certificadas nas colheitas seguintes”. Deusdado dá o exemplo da Monsanto, uma multinacional da manipulação genética “que consegue perseguir e levar à falência vários produtores rurais. O argumento é simples: se no campo deste agricultor houver plantas cultivadas com sementes Monsanto e ele não for cliente da empresa, é processado por estar a usar sementes patenteadas, mesmo que elas tenham sido propagadas pelo vento e estejam misturadas com as suas”. Em seguida, conclui que “a natureza passou a ter dono” e, ligando este artigo ao anterior, eu diria que a nossa cabeça também.

Todas as crianças que estão agora a ser medicadas, serão adultos dependentes do consumo dum químico para desenvolverem uma atividade e para se socializarem. Ninguém questiona a dependência que isso cria?

Na minha infância, ao contrário de me encherem a cabeça de químicos, os meus pais falavam-me dos perigos da toxicodependência e alertavam-me em relação a umas pessoas a quem chamavam traficantes. Hoje, esses traficantes usam gravata, visitam consultórios, oferecem viagens e patrocinam congressos. Testas de ferro duma indústria poderosíssima e que absorve milhões de dólares de investimento, estão a criar uma dependência química de que muitas das nossas crianças padecerão até ao último dos seus dias.

Este autêntico narcotráfico parece-me tão mais irreal, quanto por todo o mundo se intensificam as campanhas contra o consumo de outros estupefacientes, os ilegais, ao mesmo tempo que os seus agentes, sejam produtores, “grossistas” ou “retalhistas”, são denunciados, perseguidos e presos.

Entender, não entendo e, por isso, lembro-me de Enzenberger e do seu livro “Política e Crime”: “o que é punido é um crime, o que é um crime é punido; tudo aquilo que é punível merece ser punido e vice-versa. O modelo sintático deste género de definição deve ser procurado no dogma bíblico: ‘Eu sou Aquele que é’. Coloca-se o legislador para além de toda a lógica, para além de toda a racionalidade”. A este propósito, refere o mesmo autor, tanto na enciclopédia britânica como na legislação alemã, o crime é definido duma forma muito simples: crime é tudo o que constitua uma infração à legislação criminal, ponto final.

Só dentro desta lógica, em que a lei é irracional e está a servir de guardiã do modelo económico capitalista e de protetora dos interesses das grandes multinacionais, se pode compreender tal dualidade de critérios entre “bom” e o “mau” narcotraficante.

Argumentam os defensores destas medicações que, assim, se consegue aumentar a concentração e memória das crianças para, nas palavras de uma progenitora entrevistada no artigo em questão, “poderem lidar com a guerra da escola e os novos desafios”. Remeto-me para a célebre frase de Jiddu Krishnamurti: “Não é uma boa aferição de saúde, estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”.

É doente, uma sociedade que não ensina aos seus filhos que a realização está em descobrirem e desenvolverem as suas próprias potencialidades, mas que, pelo contrário, lhes incute uma noção de sucesso por pressão social, que vem de fora para dentro em vez de dentro para fora, nem que seja à custa de lhes dopar o cérebro, nem que seja à custa de deixarem de ser proprietários do seu ser, meros gestores dum corpo cujo pensamento está arrendado à Novartis, o laboratório que produz a mais conhecida dessas drogas.

Daqui, regresso à coluna de Deusdado, porque as consequências daquilo que se passa com a Monsanto são similares. Acaso a Monsanto criou o milho, a batata, o feijão ou o arroz? Não, tudo isto nos foi dado pela natureza ou por Deus, conforme as crenças, e resultou dum processo de desenvolvimento que demorou milhares, ou melhor, milhões de anos. Com que direito as monsantos deste mundo pegam num património que é de todos e, modificando-lhe algo, se consideram donas e senhoras do que nos pertence? Acaso pagam à humanidade direitos sobre o património que modificaram? E tudo isto, chegando-se ao ponto de, por outro processo de manipulação, o político, podermos ser condenados por semear um pé de feijão sem lhes pagar direitos. É que, além da pressão no legislador para que se acabe com as sementes tradicionais, as plantas manipuladas também contaminam as naturais e, se a Monsanto me pode processar por uma contaminação de que não fui responsável, eu não posso processar a Monsanto por me contaminar uma produção que quero que continue a ser natural.

Recentemente, a questão da pirataria voltou às páginas dos jornais depois de, no Golfo de Aden, surgirem uns maltrapilhos que saqueavam os cargueiros que por aí passavam. Para os combater foram convocados exércitos de todo o mundo e aquela zona é, agora, das mais policiadas do globo.

Quando oiço falar de pirataria, recordo também notícias esparsas de uma ou outra pessoa que foi condenada por ter transferido um ou mais ficheiros musicais na internet.

Ao mesmo tempo, e em nome dum capitalismo que já não tem qualquer tipo de ética e que tem poder para levar os Estados a esquecerem que o contrato social serve para proteger os cidadãos e não o lucro de algumas multinacionais, estamos a assistir ao maior e mais impune ato de pirataria alguma vez ocorrido: uns, roubam-nos a capacidade de sermos nós; outros, apropriam-se dum património, o natural, que é de todos. E a única razão que encontro para que os primeiros não sejam considerados narcotraficantes e piratas os segundos, é a citada explicação de Enzenberger: fora de qualquer lógica, crime é aquilo que a lei considera crime, ponto final.

PS: Para quando, a manipulação da água e do ar?


Luís Novais

quinta-feira, 3 de maio de 2012

“EU PARA O OUTRO"












Sobre eu que sou
faço eus que dou;
barro que moldam
outros que não eu.

Por que o faço?
Segredo de mim.
E esse que sou
refugio é
dessoutros que dou.

É vã tal fuga:
de tanto mostrar
esses que não sou,
preso me vejo
ao que me dou,
ao que me vêem

E preso estou
e preso m’aguardo,
sem que saiba já:
qual mim sou outro
qual outro sou mim

Claro ardil:
Salva-me d’outros
salva-me d’eus .

Salvará?

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Leitura conjunta do Blogue Destante

O blogue Destante organizou uma leitura conjunta de “O Heróico Major Fangueira Fagundes (com todolos seus anexos)” e os comentários estão disponíveis online: clicar aqui para entrar.

domingo, 29 de abril de 2012

Descrença e angustia neste nosso tempo.

Num jornal de Lima leio um artigo onde Francisco Miró, assim se chama o articulista, divaga sobre um tema que, aqui no Peru, é levado muito a sério: a origem dos terramotos e a quimera da sua previsão. Lembra Miró que até ao Sec. XVIII se acreditava que este fenómeno era provocado por Deus para castigo dos pecados da humanidade. Hoje porém, prossegue, conhecemos a sua origem natural, as suas causas físicas. Ainda assim, a ciência não alcançou a questão mais importante: prever um terramoto e, por isso, “lo único que podemos esperar es tener suerte, y que esos sucessos terribles no se produzcan entre nosotros”.

Dias mais tarde, no mesmo jornal, Umberto Eco assina um artigo sob um curioso título: “O que viaja mais rápido: os neurónios ou um mito?”. Entre outras coisas, diz o escritor que, afinal, o espinafre não tem tanto ferro como se dizia, um mito que foi construído sobre a figura de Popeye, o intrépido marinheiro que devia a sua força à voracidade com que consumia o dito legume.

Diz-se que Popeye terá sido responsável por 33% do consumo mundial de espinafres e afinal, conta-nos Umberto Eco, 100 gramas de espinafre contêm apenas 2,7 de ferro, conta os 11,6 de, por exemplo, a mesma quantidade de fígado de galinha.

Para avivar uma memória que nos é próxima, os da minha geração estarão lembrados de que, quando éramos crianças, o consumo de azeite era considerado nocivo à saúde e que, em alternativa, os médicos aconselhavam os óleos. Hoje, quando recordamos esta história, imediatamente surge a resposta consensual de que as investigações que levaram a tais conclusões se destinaram a fomentar a indústria e a agricultura norte americanas. Ressalvo que, neste caso, não me interessa saber se assim foi ou não, mas antes apontar a consensualidade do registo.

Quem viu o documentário “Inside Job” de Charles Ferguson, assistiu a um desmontar da recente crise e à demonstração da responsabilidade que cientistas e universidades tiveram na acumulação dos fatores que nos trouxeram até aqui. Nomeadamente, reconhecidos investigadores assinaram estudos académicos, onde asseguravam a solidez de aglomerados bancários que, pouco depois, entrariam em bancarrota e que, sabemos hoje, haviam sido os financiadores desses mesmos trabalhos “científicos”.

Esta bateria de citações e exemplos serve-me para abordar o que vejo como sendo as causas profundas da desorientação que se sente hoje no mundo ocidental. Netos que somos do Iluminismo do Sec. XVIII e filhos do positivismo do XIX, levamos a Ciência ao altar do dogma: sem que disso se possa culpar a própria Ciência, acreditamos que poderíamos encontrar todas as respostas através da liturgia do seu método e, mais, que o Homem educado cientificamente seria um Homem bom. O cientista substituía o sacerdote, assim como, muito antes, este substituíra o druida. Como consequência, ao longo do Sec. XIX as universidades começam a afirmar-se como os novos templos, os da Ciência, um papel que assumem plenamente no Sec. XX.

A verdade é que o templo falhou, ou nos seus grandes objetivos, ou na contradição entre expetativa gerada e realidade. A consciência disso mesmo, que nos nossos dias se vai generalizando, é, julgo, a grande responsável pela crise cultural que enfrentamos.

Que a ciência não nos levaria ao bem universal, já desde a Primeira Guerra que o sabíamos. Que a ciência fosse capaz de nos dar todas as respostas, nem foi preciso esperar por Heisenberg ou Bergson para percebermos que não pode. Hoje porém, já se descrê que os seus sacerdotes sejam incorruptíveis interessados em alcançar a verdade e discute-se que muitas das suas conclusões serão, antes, orientadas por outros interesses bem diferentes, sejam políticos, sejam económicos, ideológicos ou sociais.

É sempre assim que acabam os grandes sistemas: primeiro, começam a esboroar-se os seus fundamentos filosóficos, depois, são os seus próprios guardiões que, dispensáveis pelo filosófico esboroamento, são alvo da descrença.

Para uma cultura assente nos pilares que construiu Platão, uma cultura que acredita na transcendência da verdade, estas constatações têm de produzir uma profunda crise cultural. Nós, ocidentais, não somos capazes de viver sem o mito da Verdade e, descrentes que estamos, resta perguntar: Onde a iremos procurar de seguida?

Entretanto, sobra-nos a angústia e os seus reflexos, que vão desde a crítica generalizada e a incapacidade de acreditar em tudo e todos que se discute nos cafés, até ao extremo dos novos movimentos de contestação que, unitários, não aceitam confiar-se à mínima liderança individual.

A crise que atravessamos, muito mais do que económica, é uma crise de descrença e é paradoxal que, numa época como a nossa em que temos tanto acesso à informação, não saibamos em quem e no que confiar. E assim se vai instalando essa terrível convicção: “lo único que podemos esperar es tener suerte, y que (…) sucessos terribles no se produzcan entre nosotros”.

Luís Novais

domingo, 15 de abril de 2012

Assunção Cristas e os Leilões do nosso descontentamento

Embora estando no Peru, continuam a chegar-me ecos de Portugal. Maravilhas da tecnologia, que agora já não perguntamos ao vento que passa: ligamos o computador e esse não nos cala a desgraça.

Hoje li no “Público” digital que a Ministra da Agricultura vai leiloar os 600 hectares sobrantes da reforma agrária. Assunção Cristas diz coisas como: é “para que possam ser aproveitados por jovens agricultores” e “é um primeiro sinal do sentido que o Governo quer dar de que o Estado não quer açambarcar mais terras, quer é pôr no mercado terra que não esteja a ser eficazmente usada” (ver notícia)

Não sei se entendi bem: para que sejam aproveitadas por jovens agricultores, vai colocar a leilão? Achará a ministra que os jovens deste país estão assim tão capitalizados? Que os que têm pais ricos estarão interessados em trabalhar a terra?

Não creio que uma ministra se engane tão facilmente. Sou, portanto, levado a concluir que, na prática, os jovens serão testas de ferro da banca que, à força de juros, tarde ou cedo as açambarcará. Simples, não? O jovem endivida-se para comprar a terra, o Estado recebe o seu e o banco recebe os juros e, quando não, apropria-se da terra: ganha o Estado, ganha o banco, perde o sonho.

Portugal está cheio de terras incultas, ao mesmo tempo que tem níveis de desemprego elevadíssimos entre os jovens. Portugal tem um problema de macrocefalia de dois ou três centros urbanos que secaram o mundo rural, que lhe absorveram os seus líderes, que lhe roubaram a sua gente mais dinâmica, que lhe levaram os seus jovens.

Uma política da terra pode contribuir para resolver ambos os problemas: para inverter o ciclo migratório e para dar ocupação a parte da massa desempregada. Mas, para isso, é preciso que as políticas sirvam esse fim e não o contrário, que é o que se adivinha com este leilão.

Uma alternativa seria uma nova sesmaria, em que o Estado isentaria de impostos as terras que lhe fossem entregues por um prazo de 20 ou 30 anos e ainda pagaria uma renda não especulativa aos proprietários. Essas terras seriam entregues por contrato-programa a quem as quisesse trabalhar, havendo uma separação entre a posse da terra (que seguiria sendo dos seus proprietários), a intermediação (que seria do Estado e, em casos extremos, coerciva) e o usufruto, que seria de quem as trabalhasse.

Ao mesmo tempo, incentivar-se-ia a criação de bolsas locais de recursos (tratores, formação, apoio técnico) que, numa lógica mutualista, poderiam ser utilizados por todos.

Aí, sim, acredito que se estaria a fazer alguma coisa pelo progresso económico, social e territorial do país; que se estariam a dar passos rumo a um novo paradigma. Mas não é isso que se adivinha, o que se adivinha é mais do mesmo e o mesmo já se sabe até onde nos trouxe. …


Luís Novais