terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Aforismos II. Van Gogh


Ao filme já o tinha visto há muitos anos. Deve ser dos sessenta, talvez setenta. Revi-o. De o ver em miúdo, uma recordação forte: o desespero, o corte da orelha. E também uma imagem: o campo com corvos e aquele tiro final.
Sai-me outro aforismo que estou em época deles. Há sadismo no apreciar da arte: deleitados na dor alheia, nasce-nos a catarse.  

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Aforismos I


Dia de aforismos, o de ontem.

A espera no Instituto faz-se esperar. “O voo do Sr. Eng. atrasou-se”, a rececionista mamalhuda. “Não sei se poderá recebê-lo, já deveria ter começado a reunião do Directório”. Lembro-me da secretária. “A señorita viajou com o engenheiro”, agora é com despeito que o rosto não contradiz. Eu, eu apenas olho as mamas. “Não faz mal, posso esperar”.

Um sofá; há muitos naquela receção. Escolho um. Dois tipos, também à espera. Reconheço-os. Televisiva gente: desses que fazem paraísos em crimes ambientais.

Ao sofá, já o escolhi: fico naquele canto, que dali vejo tudo sem que muito me vejam.

Penso em mim e no meu papel. Tantos que desempenho. Quantos eus terá o eu?

Darwin assalta-me: as espécies que sobrevivem não são as mais fortes mas as que melhor se adaptam. À frase, escrevo-a como me veio à cabeça, já não vale confirmar, que vá à wiki quem queira citação bem citada; eu não que não estou para isso. Perdeu qualquer valor, ser culto, enciclopédico. Ainda bem: que tratem de criar, os enciclopedistas. Esqueçam, se querem ser gente.

Darwin de novo: a mesma frase. Adaptar: “Ajustar uma coisa a outra, de modo que possa servir ou ser usada”. Apanhado em flagrante, eu: não escapei à tentação. Chegado a casa vou ao dicionário.

…”de modo que possa servir ou ser usada”. É isso, sobreviver, afinal: servir e ser usado. Múltiplas servidões e múltiplos usos. “Vamos soldado, tens o inimigo à tua frente”, “são bombas, senhor: vêm do céu”, “ataque na retaguarda”… múltiplas situações, múltiplos usos, múltiplas servidões.

Situação-servidão, servidão-uso, uso-situação, situação-situações, situações, situações, situações. Viva as situações, viva! A todas temos de servir: múltiplos eus. Quantos eus tem o eu?

Já cá tardava, finalmente cago aforismos: instrumento de salvação, a esquizofrenia. Os múltiplos egos para as múltiplas situações: está salva a servidão. Que nos usem todos, que todos nos usem. Vos postulo nova verdade: sois múltiplos, sois múltiplos. Aleluia, aleluia.

À noite é teatro, perfomance, assim se diz: três em nudez de seu caminhar. Depois conversa-se. Um dos eus quer falar e fala. Talvez a arte seja isso: fuga à racionalidade imposta. Dizem-nos racionais, não? Como se não fossemos gente sem essa tal. Tamanha imposição: sem lógica, nem pessoas seriamos. Abençoada arte que nos permite fugir. Fica eu para eu. Esquecemos a servidão, usámo-nos sem que nos usem.

Mas o jovem convicto diz que não. Que a arte tem de ser combate, que não se trata de estética ou transcendência. Que tem de ser real para que seja denúncia. Ou é denúncia, ou é mero deleite da burguesia. Sinto a naftalina da palavra. Podem ser bem velhos, afinal: os jovens.

Concordo com ele: sim, a arte é combate. Falta que a vida não se faz dum só e nem às mesmas servidões todos nos desajustamos, os usos. 

Luis Novais

domingo, 20 de janeiro de 2013

Bacalhau à Luis Novais


A esta receita, de inventada por mim, atrevi-me a chamar-lhe à Luís Novais. A base de partida é o célebre bacalhau com boroa e é muito simples de fazer, ainda que algo trabalhosa.
Ao das fotos, cozinhei-o graças ao amigo Fernando Santos que mo trouxe em atribulada viagem aérea, muito contrária aos costumes oceânicos da tão apreciada espécie.

1 Lombo de bacalhau
½ Kg de batatinhas pequenas
1 Cabeça de alho
1 Cebola
1 Ramo de coentros
1 Folha de louro
1 Ovo
1 Chouriço de barrancos ou toucinho fumado
Boroa de milho
Azeite, sal  e pimenta
Para as batatinhas:
1.       Faça um golpe nas batatinhas e, sem as descascar, ponha-as a cozer com sal durante apenas 5 minutos.
2.       Retire as batatas e coloque-as numa travessa de ir ao forno, com metade do alho picado, pimenta, a folha e louro, um pouco de sal fino e azeite, tudo previamente aquecido. Deixe-as assar até estarem bem alouradas, revolvendo-as de vez em quando. Quando estejam prontas, retire-as e coloque-as numa panela, colocada sobre outra com água fervente para as manter quentes

Para o bacalhau:
1.       Migue a boroa muito finamente. Misture-lhe um pouco de azeite e amasse até que esteja bem fundida. Junte-lhe pimenta, alho picado, um pouco de sal fino e os coentros bem picados. Por fim amasse tudo com o ovo previamente batido
2.       Na travessa onde assou as batatas, disponha a cebola em rodelas e a posta de bacalhau. Sobre esta, espalhe a massa de boroa que preparou anteriormente e, por cima, coloque o chouriço de barrancos em rodelas ou o bacon.
3.       Deite o azeite e leve ao forno tendo atenção para que asse sem secar. Eu costumo aquecer previamente ao lume até o azeite estalar e só depois levo ao forno.
4.       Quando o bacalhau estiver quase no ponto, junte-lhe as batatinhas e deixe assar um pouco mais. Dois minutos e… bom apetite J
PS: O bacalhau da foto é a melhor matéria prima que se pode encontrar em Portugal: o do Sr Victor do Restaurante e mercearia homónimos, em São João de Rei, Póvoa de Lanhoso.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Setor Privado versus Iniciativa Privada


O Sr. Alexandre Soares dos Santos é uma pessoa digna e que tem a coragem de dizer o que pensa. Isso ninguém lhe tira e ainda bem que ainda temos pessoas assim. No entanto, reconhecer isto, é diferente de pensar como ele, ou tanto como ele.
 
Numa entrevista ao Expresso desta semana, afirmou que o grande falhanço do país começa em não aceitarmos a iniciativa privada.
Concordo, mas ressalvando.
Portugal tem muito setor privado, tem até de mais. O que nos falta é iniciativa privada e, se nos falta, é precisamente porque quem está verdadeiramente dependente do Estado é esse setor, que não consegue viver sem as as ligações priveligiadas que mantém com a política.
Hoje, mais do que nunca, sabemos da quantidade de contratos e negócios milionários feitos à sombra dessa relação público-privado. Acredito que, sem ela, poucas das nossas grandes empresas (estejam ou não fiscalmente sediadas no país) seriam capazes de ter uma estratégia de sobreviência.
São contratos e negócios que estão agora a ser pagos por todos os portugueses; os tais que, também segundo o Sr. Soares dos Santos, têm aversão ao privado.
Nunca se fez tanta propaganda aos jovens: que devem ser empreendedores, que devem competir, que devem ter capacidade de risco. No entanto, a prática denuncia o discurso: quando se sabe de mais um negócio garantido pela relação entre uma empresa e um político, em que vão acreditar os candidatos a empreendedores? Que o sucesso está no mérito empresarial, ou no tráfico de influências? No risco, ou na relação obscura com o Estado?
Este não é um problema apenas português, ainda que se sinta particularmente no nosso país. Todo o capitalismo ocidental o vive: desde que a economia se financiarizou, o que interessa já não é o que se produz, mas o que se especula. E a especulação, é sabido, vive da corrupção e gera muitos ricos mas não gera riqueza. Antes pelo contrário, produz bolhas que, quando rebentam, destroem valor e obrigam os inocentes a pagar pelos culpados; precisamente aquilo a que hoje assistimos.
Pedem anunciações ao FMI que mais não são do que verdades auto-proclamadas Querem destruir a escola pública para a entregar ao setor privado. Querem destruir a saúde pública, arrasar o Estado redistribuídor… Olhemos para os exemplos: por que razão não têm os Estados Unidos uma saúde pública? Porque lá, como cá, há setor privado a mais e este não permite um verdadeiro serviço nacional. Com que resultado? O país que mais gasta per capita em saúde tem indicadores piores do que Portugal, ou Cuba: mais mortalidade infantil, menos esperança média de vida… trata-se, enfim, do país melhor e mais sofisticado a matar, mas dos piores a curar. É que, matar, curiosamente, continua a ser uma função do Estado.
Enfim, eu sou também um fervoroso adepto da iniciativa privada. Precisamos de mais? Sim. É urgente que ela vingue? Sim. Mas para isso precisamos de coragem para acabar com este "setor" privado, temos de perceber que a diminuição do Estado não pode ser uma via para engordar o setor à custa da iniciativa.
 
Luís Novais

domingo, 30 de dezembro de 2012

"GUERRILHEIROS E NARCOTRAFICANTES DE BRAÇOS DADOS"

Guerrilha e narcotráfico nos vales dos rios Apurimac e Ene (selva alta do Peru).
A minha reportagem in loquo saiu no EXPRESSO deste Sábado (29.12)




sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

VOANDO SOBRE UM NINHO DE COCA


São 59, os portugueses que estão presos no Peru. Correios de droga, apanhados nas malhas dum narcotráfico em que são o elo mais fraco. A minha reportagem sobre as suas histórias de vida, na Revista do Expresso deste Sábado, 8 de dezembro.

Com o recrudescimento da crise, espera-se que estes números aumentem. Normalmente, são recrutados entre jovens com trabalhos precários e desempregados, dois perfis que estão em crescimento, como se sabe.

Viajam em situação precária, ficam 3 a 4 dias no Peru e no último dia têm de ligar para um número de telefone. Entregam-lhes 3-4 kg. em fundos falsos de malas ou fazem-nos a engolir cápsulas e daí vão diretos para o aeroporto... ou para a prisão, em muitos casos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Da Antroplogia à Ideologia


Recentemente, Luis Alves de Fraga, um pensador português que admiro e costumo acompanhar nas redes sociais, lançou no Facebook o desafio da busca de novos modelos económicos, capazes de darem as respostas que as ideologias do Sec. XIX já não estarão a conseguir.
Não me vou alongar na referência à sua intervenção, porque ela pode ser lida aqui. Basicamente, segundo Alves de Fraga, a seguirmos o pensamento oitocentista com a respetiva concretização novecentista, restar-nos-ia optar entre dois modelos económicos: de mercado, um, planificado, o outro. O repto era este: são necessários novos pensadores que formulem novas teorias e novas doutrinas.

Participei do repto, com um artigo que escrevi há tempos, onde defendia que os centripetismos cultural e cronológico nos impedem de encontrar respostas onde elas já tinham existido (ver artigo). A resposta que Alves da Fraga me deu, também pode ser lida no mesmo local e resumo-a nesta frase: a minha visão apontaria “para a revisitação de velhos métodos de sobrevivência que tiveram uma época e foram fruto dela”.
A minha questão é, no entanto, precedente: a preocupação com a teoria e a doutrina, não será ela mesma oitocentista? Não apontará também para a revisitação de velhos métodos? Não será essa ideia, incubada nas luzes, de que podemos refundar o mundo com base na racionalidade, a base da utopia iluminista em que ainda estamos a viver?
Ao longo da sua História, a humanidade foi capaz de construir modelos económicos e sociais que funcionavam e que, embora potenciados pela doutrina, precediam-na. A doutrina era desenvolvida e utilizada depois, quando essas mesmas sociedades se queriam tornar dominantes e impor o seu modelo antropológico. O imperialismo é filho da resposta doutrinária, portanto, enquanto a doutrina deriva da evolução antropológica.

Talvez a grande novidade do Sec XIX tenha sido essa: uma espécie de metafísica, segundo a qual uma ideia racionalizada deveria preceder a vivência (evitei propositadamente dizer “a existência”). Essa quase teologia que originou das maiores injustiças, dos maiores massacres e das maiores ditaduras a que a humanidade assistiu.
É por isso que gosto de olhar para o passado, de perceber o sentido da evolução antes de chegarmos à ditadura da doutrina.
Houve alguns portugueses temerários no seu pensamento, que procuraram formular sínteses entre os modelos de pensamento dominantes no seu tempo e as forma de vida, o mesmo será dizer que entre a ideologia e a antropologia. Entre eles, destaco Herculano, que toda a vida lutou por uma democracia sem “revolução cultural”, isto é, sem destruição de tudo o que existia para construir sobre as cinzas. Mas até mesmo Garret, na sua súbita nostalgia pelo frade, acabou por alinhar nessa ideia de que a pura racionalidade tinha levado à destruição.

Enfim, não é que eu seja um cego admirador de Calisto Elói antes da queda, sobretudo porque ele mesmo já estava eivado do tal "pecado" doutrinador. Mas lá que o prefiro aos Pereiras de Melo, isso prefiro.

E que estou eu a fazer se não a entrar nessa mesma contradição? Sou mais um dos filhos do Sec. XIX, não há como fugir a isso. Porém, não tão legítimo que não conviva bem com as contradições da minha racionalidade, quando em confronto com a minha vivência.
 
Luís Novais