quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A TENDA DOS MILAGRES


Livres dos axiomas liberais, esperava que o Bloco de Esquerda fosse capaz de obrigar um PS ideologicamente esquizofrénico, a reencontrar a sua raiz política. Precisamos de mais e não de menos Estado, precisamos que a política tenha preponderância sobre a economia, precisamos que a ágora se sobreponha ao mercado. Para o altar bastou-nos Isabel, não precisamos duma Catarina.

Consta que Isabel dava pão aos pobres, coisa que a Dinis não agradava, tão zeloso era de suas riquezas conservar. O resto já sabemos: “Rosas são senhor”, espécie de anti milagre que transformou o que era útil ao estomago dos que o têm vazio, em algo apenas prazenteiro à vista dos que fruem de  preocupações muito mais sublimes do que o almoço do dia seguinte.

Caridosa e meritória, Isabel foi elevada ao altar e ficou com história para ser contada, mas não consta que tenha mudado o seu tempo rumo a uma sociedade mais justa.

Nesta diferença entre caridade e reforma social, está a distância que deve separar o Estado moderno, dum cidadão isolado; uma santa dum político.

Tantas foram as revelações dos transvios económicos das últimas décadas, que deveria ser impossível nada aprender com tudo o que agora sabemos. No caso português, basta citar alguns nomes que antes eram marcas inexpugnáveis, umas, e ascendentes, outras: BES, PT, BPN, BPP… E já nos estão a preparar para mais.

No estrangeiro poderíamos dar outros tantos exemplos que atestam quanto o descontrole da ganância pode destruir valor: Madoof, Lehman Brothers e, mais recentemente, Volkswagen.

O desafio político dos nossos dias, está em encontrar um novo equilíbrio: Entre iniciativa privada e controle estatal; entre sector público e sector privado; entre intervenção do Estado e liberdade do indivíduo; entre harmonia social e ambição pessoal.

Tão distante que está dos axiomas liberais, esperava que o Bloco de Esquerda fosse capaz de obrigar um PS ideologicamente esquizofrénico, a reencontrar a sua raiz política. Precisamos de mais e não de menos Estado, precisamos que a política tenha preponderância sobre a economia, precisamos que a ágora se sobreponha ao mercado.

Sei que o acordo entre os dois partidos não está finalizado. Reconheço que este comentário é guiado apenas pelo que vai saindo na imprensa e por alguma informação que fontes amigas me vão passando. Se tudo aquilo que se tem sabido é verdade, então não estamos perante uma negociação política na verdadeira aceção, mas face a uma distribuição de pães, eventualmente regada com algumas sinecuras para militantes.

Mais um ou menos um ponto de aumento nas pensões, descongelamentos, reposição salarial a um ritmo menos lento. Isto é querer mudar efeitos sem mudar causas. Não é política, é populismo quase à moda de Portas quando era Paulinho e das feiras.

Por esta a via, têm razão os que adivinham dilúvios desperdiçadores dos sacrifícios que foram feitos.

Resta-me a esperança de que o PCP não abdique de ter um papel político e não aceite ficar por este bodo aos pobres.

Para o altar bastou-nos Isabel, não precisamos duma Catarina.



Luis Novais

terça-feira, 27 de outubro de 2015

RIO DE JANEIRO, UMA EXPOSIÇÃO E “O QUE NÃO EXISTE MAIS”

Clovis Graciano, “Músicos” (1969) 

Foram trezentos anos desgastantes, estes que vivemos. Fizemos e desfizemos utopias, matamos e ressuscitamos deuses, navegamos bipolares entre razão e obscurantismo, levantamos altares a uma ciência que nos devolveu holocaustos, apostamos alma na matéria e ficamos sem nada, quisemos fazer mundos e o mundo era afinal terra que nos assentou sonhos. Estamos numa dessas fases, dessas em que tudo o que foi esperança de gerações passadas é agora desesperança.


A história das mentalidades decorre num contexto de esperanças, desesperanças e redobradas esperanças. Somos humanas e temos consciência, o que nos dá essa tão fantástica quão desesperante capacidade para entender que não somos entidade, mas entes, seres sem Ser. Não nos é possível esse alcance sem cairmos na tentação do aprendiz de feiticeiro, sem entrarmos no tão humano jogo de querer marcar e mudar o mundo. Podendo imaginá-lo, é impossível não tentá-lo; mas tentar é muito mais fácil do que alcançar. E eis o alento duma geração que rapidamente se transforma em desânimo, até que os seguintes seu próprio ânimo encontrem.

Lembro-me de ter feito esta reflexão num pequeno museu de Estrasburgo, quando fui observando as transfigurações mitológicas, fantásticas e realistas que se sobrepunham numa cronologia muito óbvia: Clássico, barroco, romântico, neoclássico. Recentemente, tive a mesma sensação no Rio de Janeiro, que além de me oferecer a sua beleza natural, me presenteou uma mostra de arte e um livro. Aquela, foi a coleção Santander de arte contemporânea, exposta no Museu de Belas Artes. O livro, foi a primeira obra dum escritor que não conhecia: “O Que Não Existe Mais”, de Krishna Monteiro.

A própria exposição convidava este casamento, que aí se procurava unir obras de arte plástica, com obras de arte literária. Poemas de Vitor Loureiro, ou Paulo Henriques Britto, lado a lado com quadros de Manabu Mabe, Milton da Costa ou Francisco Robalo.

A face opaca do mundo
Nos encara, fria e cega
É necessário enfrentá-la

Talvez tudo se resuma nestas palavras de Britto, também elas expostas no Museu. Talvez o problema esteja entre essa imperiosa necessidade de enfrentar, e a desalentadora ignorância de como fazê-lo.

Nas telas que se sucediam, cada artista com sua visão, a sua parte da poção transformadora. Absolutamente certos, uns, prenhes de dúvidas e desalento, outros.

John Graz, “Canoeiros” (1975)

Motivos relacionados com o trabalho, dum “Colheita de Café” (1953) de Manabu Mabe, dos “Músicos” (1969) de Clovis Graciano ou dos “Canoeiros” (1975) de John Graz. Quadros que nos levam fugindo para o regionalismo das “Casas de Ouro Preto” (1936) de Milton Costa e dos “Coqueiros de Itapuã” (1956) de José Pancetti. Artes que mostram uma crença nas mãos transformadoras, porque trabalham, porque tocam melodias que nos comovem; ou então na mudança pela regeneração, pela busca do que foi e já não é, uma antiga integridade apenas visível na natureza, no campo ou na velha urbe.

 José Pancetti, “Coqueiros de Itapuã” (1956)

“Fauna, Flora e Nativos Brasileiros” (1953) de Carybé, é já completamente indigenista, quase em desespero e não vendo qualquer reforma possível dentro dos nossos parâmetros civilizacionais, o artista parte em busca da harmonia dum autêntico bom selvagem, essa mesma harmonia que já não consegue encontrar no seu próprio contexto civilizacional. Entre o eu que conheço bem ser mau, e o outro que conheço mal ser bom, a opção pelo outro.

 Carybé
“Fauna, Flora e Nativos Brasileiros” (1953)


Desconcertados com a nossa incapacidade transformadora, já não cremos mãos, não cremos música nem procuramos mistérios em passados anacrónicos ou sincrónicos. Se à face opaca do mundo é necessário enfrentar, façamo-lo “Como se escala uma pedra/ É preciso penetrá-la/ Como se houvesse um lá dentro”.

A única forma de decifrar um enigma, é outro enigma que, por indecifrável, esconda quão real é o irreal.  Entramos em “Delirio” (1964), “Extase” (1964) ou “Sonho”, todos de Farnese de Andrade. Já não conseguimos a unidade perdida, eu e o outro são peças impossíveis de reunir, tanto que já sentimos estranhamento quando descobrimos que “É até curioso falar com um homem inteligente”(2010) de Flávia Metzler. Essa mesma desmultiplicação de eus que encontramos nas “Cabeças” (1995) de Siron Franco. E afinal, tudo se resume num “Enigma” (1989), de Gilvan Samico.

Gilvan Samico, “Enigma” (1989)
Mas “A face opaca do mundo/ Nos encara fria e cega”. “É necessário enfrentá-la”, sim. Mas como? Como, agora que as mãos não se provaram regeneradoras? Que o regresso nostálgico não reformou, que cada enigma por decifrar se tornou mais indecifrável pelo enigma decifrador?
Siron Franco, “Cabeças” (1995)


Flávia Metzler, “É até curioso falar
com um homem inteligente”(2010)
Mais más que boas, essas mãos, incapazes do bem, transformam-se em instrumentos do mal. “Howling for You” (2012) de Renata de Bonis. A perturbadora jovem imperturbada, essa que caminha, de costas para nós, rumo a bosque cinzentos, loiro cabelo, sangrentas mãos. “Howling for You”. Talvez este desconcerto do real, esta consciência dos limites, a era do fim dos sonhos, talvez tudo isto explique também o súbito fascínio pelo fantástico: duendes, mortos vivos, possessões. Não somos donos, nem de nós, nem do nosso querer, muito menos do humano destino. “Howling for You”.

Renata de Bonis, “Howling for You” (2012)




“O QUE NÃO EXISTE MAIS”
Será por acaso que descobri esta obra depois de ver esta exposição? Seria bom que tudo estivesse traçado por soberana mão, mas tão pouco sou decifrador de enigmas. Krishna Monteiro desvela-nos oito contos com vidas e pensamentos que rumam sem destino, talvez porque num passado longínquo já acreditamos no destino, talvez porque num outro tempo mais próximo estivemos certos de que, afinal, cada um seria dono do seu caminho e, por último, talvez porque  nos caiu o mito iluminista desse Homem que, graças ao conhecimento, seria bom; eis-nos sem crença salvadora.

Neste livro vemos passar sentimentos em catadupa e sem ordem aparente. A finitude e a incapacidade de aceitá-la, no conto que dá título ao livro. A perda dum pai que, aos olhos do narrador, teima em reaparecer, estando presente em cada objeto, em cada momento. Tudo isto resumindo outro dos nossos dramas: sabemos que somos, o que já não é pouco, e sabemos de insuportável saber que algures deixaremos de ser.

“As encruzilhadas do Dr. Rosa”, parecem ser as mesmas do homem do nosso tempo. Um registo quase onírico, que balanceia entre crenças. Uma batalha de inconciliáveis: o cientista que cura e o batista que purifica. Ou então nesse outro conto, tão simples como sendo apenas a história dum galo de combate. É narração do próprio animal, um conflito permanente entre o que deve ser e o que tem de ser, entre vida e luta, entre amor e ódio, entre luta e morte. Um personagem que balanceia entre o implacável e a autocomiseração.

As histórias sucedem-se e, um por um, vamos sentindo o mesmo desespero de cada personagem. Já não são Ícaros, que caíram, mas subiram, nem Sísifos, de tarefa inglória mas grandiosa. Já não é o mundo de Aquiles e Heitor. Já não ecoa a voz guerreira de Sarpedon, cuja consciência da morte é ânimo para imortalização: “Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos/ viver para sempre isentos de velhice e imortais,/ nem eu próprio combateria entre os dianteiros/ nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora de homens” (“Ilíada”, Canto XII).


Foram trezentos anos desgastantes, estes que vivemos. Fizemos e desfizemos utopias, matamos e ressuscitamos deuses, navegamos bipolares entre razão e obscurantismo, levantamos altares a uma ciência que nos devolveu holocaustos, apostamos alma na matéria e ficamos sem nada, quisemos fazer mundos e o mundo era afinal terra que nos assentou sonhos. Estamos numa dessas fases, dessas em que tudo o que foi esperança de gerações passadas é agora desesperança. O mundo, o outro, voltou a ser um inalcançável que se observa, mas que funciona por si, sem ordem nem ordenador. Então, só resta o que restou a esse personagem que Krishna nos apresenta em “Um âmbito cerrado como um sonho”: “Além da janela, depois da ponte, acima da baía, o sol se põe. Quatro mulheres conversam, eu, refestelado sobre a almofada, observo-as pouco a pouco desaparecerem nos escaninhos do meu sono”. Assim, passivamente, seguindo o seu ritmo, sem alheia interferência, mortal e sem glória, numa palavra: “howlling”.


Luís Novais

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

DEVANEIOS PRESIDENCIAIS?



A esquerda portuguesa tem agora a sua oportunidade de fazer história e António Costa de provar que não andou a brincar connosco: Um candidato presidencial único e uma coligação eleitoral em Abril.

Começo por fazer uma declaração tão breve quanto clara: Sou contra a adopção da moeda única em Portugal e defendo que deveríamos sair da União Europeia. Acredito que o nosso contexto geoestratégico é atlântico e a nossa União natural é com o Brasil, Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné. Numa palavra, defendo o sonho atlantista de D João VI, tão estupidamente interrompido pela burguesia portuguesa de 1820.

Como aparte que não conta para a substância do que aqui pretendo defender, digo também que sou contra a deriva neoliberal deste governo. Defendo o primado da política sobre a economia, a função distributiva do Estado e a existência clara dum setor público em áreas estratégicas. Sou contra a privatização da TAP.

Quem se der ao trabalho de ler o que já aqui escrevi no passado, percebe que o meu pensamento é claro neste dois grupos de matérias.

Feitas estas declarações, compreendo que uma coisa é o que eu defendo, outra muito distinta é que haja o direito de querer mudar radicalmente o rumo dum país, sem que haja um consenso muitíssimo alargado. Por agora, sei que estou no domínio da utopia, mas também sei que esse é o mesmo domínio em que estaria m aqueles que na Europa de 1940 defendessem a União que agora existe e que, afinal, começou a ser construída poucos anos depois, mas só depois que se foi gerando esse consenso.

É para isso que servem os utópicos: preparar o futuro quando ele chegue. Há dois modelos de mudança: um pela imposição ditatorial, que normalmente termina em tragédia, outro pelo reformismo, aquele que defendo.

Depois da recente declaração do Presidente da República, não faltaram vozes acusadoras: as mais brandas denunciaram-no como chefe de fação, as mais duras como ditador.

Creio que estas acusações significam uma deficiente compreensão daquilo que é a essência do regime democrático. O nosso modelo de Estado surge com o pensamento dos iluministas, esses “utópicos” do dealbar das monarquias absolutas. O seu modelo de soberania cidadã aprofundou-se, ao ponto de perceberem que há uma clara distinção entre Democracia e ditadura da maioria, e foi por isso que conceberam um sistema de divisão de poderes, de acordo ao qual uns controlam e limitam os outros.

Depois de Montesquieu este princípio foi aprofundado. Nuns casos criou-se mais do que uma câmara, noutros uma desproporcionalidade da representação, noutros ainda um poder intermédio, que não é executivo nem legislativo. Este é o nosso caso e não foi por acaso que se decidiu que o Presidente da República fosse eleito por voto universal, o que lhe dá uma legitimidade clara para, dentro dos limites constitucionais, entrar no jogo dos pesos e contrapesos da Democracia.

A decisão de Cavaco Silva está no estrito âmbito dos seus poderes constitucionais e esses poderes foram concebidos desta forma para que, em momentos como o atual, alguém os possa usar para criar peso e medida. Foi isso que o Presidente fez, concordemos ou não.

Ultrapassada esta questão, fica-nos a de chefe de fação.

Nas palavras do Presidente não está claramente dito que jamais empossaria um governo de que fizessem parte forças antieuropeias e anti Nato (repito: eu sou antieuropeu e por mim até podíamos sair da Nato), mas infere-se que dificilmente o fará e, sobretudo, nas condições pretendidas pela dupla Costa/César.

Mais uma vez, dentro do limitado campo de ação que tem o Presidente da República, há momentos chave em que lhe compete interpretar o sentido do país. Aconteceu noutras circunstâncias. Aconteceu com Soares quando dissolveu a Assembleia da República em 1987, apesar de lhe ter sido apresentada uma solução de governo maioritária à esquerda. Há dias João Cravinho explicou na televisão que, nesse momento, Mário Soares interpretou a representatividade do PRD como já não sendo real e decidiu convocar o soberano; tinha razão. Aconteceu em 2004 quando Jorge Sampaio fez cair um governo com suporte parlamentar. Sampaio interpretou que o sentimento dos portugueses não era favorável àquele figurino governativo e convocou eleições; tinha razão. Aconteceu agora com Cavaco Silva: competiu-lhe julgar se a aliança pós-eleitoral das esquerdas correspondia ou não à vontade dos eleitores. Concluiu que não e indigitou Passos Coelho. E a meu ver também tem razão; julgo que, de facto, tal aliança não corresponde sequer à vontade da maioria dos eleitores dos três partidos.

Tudo isto é normal e constitucional. Curiosamente, muitos dos que defenderam Sampaio em 2004, atacam agora Cavaco por alegadamente extravasar funções… conforme a conveniência, não podemos ser à vez, ora muito presidencialistas, ora muito parlamentaristas.

Devo dizer que tinha algumas esperanças de que a esquerda se entendesse. Achava, como acho, que no momento atual há poderes económicos que têm de ser refreados e que uma força como o Partido Comunista é capaz de impor respeito. Mas uma novidade destas tem de ser feita de forma clara e não nos corredores. No mínimo, que houvesse o tal acordo que foi tão falado como nunca visto, na melhor das hipóteses que houvesse uma coligação eleitoral, ou que na campanha se assumisse a possibilidade de entendimentos parlamentares. Em vez de fazer isso, António Costa fez o contrário. Porquê? Porque sente que o Presidente tem razão: a maioria do seu eleitorado não quer esse acordo e uma parte iria indubitavelmente votar na coligação de direita.

Graças à compreensível cautela presidencial, a esquerda portuguesa tem agora a sua oportunidade de fazer história e António Costa de provar que não andou a brincar connosco: Um candidato presidencial único e uma coligação eleitoral em Abril. Acreditam nisso? Eu também não. Então Cavaco estava certo.



Luís Novais

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

ANTÓNIO COSTA NO SEU LABIRINTO



Neste momento, António Costa está na camisa-de-forças em que ele mesmo se meteu. Coliga-se com a direita, e perde eleitores à sua esquerda. Coliga-se com a esquerda depois dum acordo que assuste os mercados, e escapam-lhe para a direita. 


Há momentos na política que exigem uma velocidade capaz de surpreender o adversário. Nessas alturas, a mínima lentidão permite escavar trincheiras, e não é preciso recuar 100 anos para saber como estas posições imobilizam qualquer contenda.

António Costa deveria sabê-lo. Depois de fazer cair Seguro com a célebre frase da vitória por “poucochinho”, exigia-se-lhe o primeiro lugar com um resultado expressivo. Em vez disso, perde por muitos e foge para a frente tentando ser primeiro-ministro, apesar do resultado que, contra toda a previsibilidade política, sofreu.

Tendo capacidade de encaixe e jogo de cintura, poderia salvar-se com uma coligação à esquerda que, não sendo contra-natura ou ilegítima como se diz, contraria a tradição. Mas enfim, esta existe para ser rompida, haja força e argumentos para consegui-lo. Derrotado nas urnas, disposto a fazer uma aliança extraordinária, o mínimo era conseguir ser rápido, correr, galgar a onda e os adversários, antes que se abatesse, aquela, e se entrincheirassem, estes.

Não conseguiu. O PCP usou o lastro da sua experiência e disse-lhe nim: que avançasse na prancha rumo ao mar de tubarões, e que nem era preciso qualquer acordo. Quanto ao Bloco, ainda não absorveu a sua nova dimensão e, sobretudo, não tem a previsibilidade de anos e anos de jogos e de cumplicidades internas, com as inerentes interdependências. Por outras palavras, é um partido em que todos são muito livres e isso dificulta o estabelecimento de compromissos internos, tanto que Catarina teve de vir a terreiro dizer que quem fala pelo partido é ela.

Entretanto passaram 15 longos dias. Dentro do PS, barões e duques já deram o abraço de anaconda, bem explicito nas declarações de Jorge Coelho: “Tem de ser um acordo sólido e transparente. Tudo escrito e assinado”… ou seja, aquilo que bloquistas e comunistas não podem dar, sob pena de passarem para si o ónus do eclipse político no médio prazo. A estocada final está dada por Passos Coelho que, com ou sem razão, conseguiu passar a imagem do bom rapaz disposto a partilhar a bola com um adversário que, sem a ter, a quer para si. O último desafio foi muito claro: Se quer influenciar a governação, então venha jogar, não só com a nossa bola, mas dentro da nossa equipa.

Neste momento, António Costa está na camisa-de-forças em que ele mesmo se meteu. Coliga-se com a direita, e perde eleitores à sua esquerda. Coliga-se com a esquerda depois dum acordo que assuste os mercados, e escapam-lhe para a direita. Excluída, parece a hipótese de que se coligue sem que os ditos mercados se assustem: nem comunistas nem bloquistas estarão na disposição de perder a sua base eleitoral apenas para que o Partido Socialista possa nomear um primeiro-ministro.

Resta-lhe o caminho da oposição, o que salvaria o PS, mas seria o seu fim político. O partido já percebeu isto, e não é difícil supor qual será a parte mais fraca.

Para alguém que sempre se dedicou à política, imagina-se que quão doloroso poderá ser: chegar aqui e morrer na praia, depois de abandonar Lisboa e um leque de outros voos que o percurso de Jorge Sampaio bem demonstra. Quanto mais depressa António Costa cair na real, mais ganha o PS, a esquerda, a direita e o país… enfim, peso a mais para um só homem. É duro, sim; compreende-se, mas como diria outro ex-secretário-geral, “É a vida!”


Luís Novais

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

DUAS SÉRIES (Fargo e Breaking Bad) E UMA REFLEXÃO

A pressão socialista que se acentuou na segunda metade de oitocentos e o terror à revolução bolchevique de 1918, com a consequente criação da poderosa União Soviética, fizeram com que o capitalismo se autorreformasse, em variantes social-democratizantes na Europa, ou de ascensão económica individualista nos Estados Unidos. No fim do século XX, a queda do muro de Berlim e a globalização financeira aliviaram esse pânico e fizeram com que a promessa de ascensão se limite hoje a um vago culto do empreendedorismo; estratégia individual que putativamente estaria ao alcance de todos e que a todos permitiria uma plena realização económica e, supõe-se, também humana.

Nos dias que correm, isto é tudo o que o sistema tem para oferecer a um grupo social que é naturalmente efervescente. Enquanto se acumulam os escândalos financeiros e de corrupção, resulta claro que vivemos numa estagnação proletarizadora dos escalões intermédios da pirâmide social: A anteriormente forte classe média, pouco mais futuro pode antever do que uma luta diária pela mera sobrevivência, à espera duma reforma  incerta e recortada.

Cada vez mais novos sabemos aquilo que vamos ser em velhos, e isso matou a esperança, essa grande dinamizadora do progresso e da paz social.

Atravessamos tempos muito parecidos com os de Rodión Raskólnikov, esse anti-herói que Dostoievski retratou em “Crime e Castigo”, e que a custo conseguia manter as aparências duma classe média cuja ascensão estava vedada pela aristocracia rentista, a mesma que açambarcava zelosamente cada migalha dum regime já então em plena decadência.

Esta reflexão é-me suscitada porque comecei agora a ver essa série que adivinho excepcional: “Fargo”, de Noah Hawley. Uma opção que se segue a ter devorado todos os capítulos de “Breaking Bad” de Vince Gilligan. As duas séries revelam como dois homens, ambos de meia-idade, ambos de classe média e ambos falhos de sonhos, rompem a barreira da inevitável decadência, através do poder psicológico que lhes é dado pela prática quase casual dum primeiro crime, que suscitará uma cascata incontrolável.

São personagens que têm tudo a ver com Raskólnikov, um pobre-diabo que se engrandece pelo materialmente desnecessário e cruel assassinato de Ivánovna, a desprezível usurária.

Tal como em “Crime e Castigo”, a generalidade do público vai gradualmente empatizando com os dois criminosos, e o êxito destas séries deveria fazer-nos refletir sobre o abismo para que se dirige o nosso modelo social. Apesar dos devaneios libertários e maçónicos de Pedro, o personagem que Tolstoi tão bem desenvolveu em “Guerra e Paz”, sabemos o fim para que caminhava a sociedade Czarista. E nós?


Luís Novais

Uma nota a 2 de Agosto de 2016: Depois da vaga de atentados que estão a varar a Europa e os Estados Unidos, pergunto-me se o êxito destas séries não seria anunciador do que aí vinha. Teremos de retornar ao velho Dostoievski e a "Crime e Castigo" para perceber as intrincadas motivações de tudo isto?... 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

ASAS EM PEDRA

Um pássaro,
a outro buscando.
Em firmamento voa,
chão firme sonha.

(Procura)

    Ar, terra.
    Cogita, extensa.
    Amor, ação.
    Ver, sentir.
    Amar, comer
    Alma, corpo.

A esse com asas em pedra,
amando volteia:
Do fogo se faz azul;
é da terra que o céu se vê.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Uma carta ao meu primo

Durante muitos anos, fui mantendo uma correspondência mais ou menos frequente com o meu primo António Novais Machado, que nos deixou o ano passado, tendo 96 anos.
Teria eu uns 15 anos quando lhe escrevi a primeira e recebi a sua resposta. Estarão em casa dos meus pais e um dia terei de procurá-las.
É curioso o que aprendemos de nós, das nossas dúvidas e da nossa evolução, quando lemos as cartas que escrevemos.
Hoje fazia uma pesquisa no meu computador e descobri esta. Trata-se da resposta a uma outra que ele me escrevera. É de 2008 e foi a última que lhe enviei, nos últimos anos a vista cansou-se-lhe e lia com muito esforço.
Retirei a introdução porque muito pessoal, e decidi reproduzi-la aqui. Ele era crente e sentia que teria uma vida além desta. Eu, que não creio, espero que a razão estivesse do seu lado e que, onde estiver, possa reler o que escrevemos e saber das saudades que tenho.
Uma nota, dizendo que a referência a "Amanhã o Futuro" é sobre um dos meus livros, que não publiquei e de que fiz apenas uma espécie de edição zero para entregar aos mais chegados. Não me pareceu que fosse obra com refinamento para lançar ao público, mas tem-me acompanhado desde 2006, com alterações e acrescentos periódicos... talvez um dia a publique, já com outro nome. Quando fiz a tal edição zero, estava longe de saber que a tipografia fazia depósito legal e, contra a minha vontade, encontra-se em algumas das bibliotecas públicas do país.

Agora, a carta.


Lisboa. 7 de Maio de 2008

Caro primo António:

(…)
Ora, tanto o lançamento da primeira edição como a preparação da segunda têm-me tomado bastante disponibilidade mental (não falo de tempo porque esse consigo gerir bem). E eu não conseguiria enviar uma carta a agradecer-lhe a sua sem ter uma efectiva disponibilidade mental.

Desde logo porque quis voltar a Nietzche. Nomeadamente aos apontamentos que tomei nas suas obras (não consigo ler sem deixar os livros todos marcados com notas e sublinhados).

Mormente havia uma nota que tinha tomado em “Assim Falava Zaratrusta” que queria encontrar e que aqui lhe reproduzo integralmente:

Uma questão: este é um livro que apela ao relativismo ou que o contraria?
Por um lado parece lançar um apelo ao relativismo: o indivíduo que renega os valores pré-estabelecidos e que procura valores dentro de si mesmo é o super-humano.
Vai no mesmo sentido o capítulo “Dos mil e um fins”, onde Nietzsche nota que cada povo tem o seu “Bem” e o seu “Mal” e que esta noção não é  absoluta e universal: tem, antes, funções de auto-preservação.
Também aqui estaremos aparentemente perante uma postura relativista. Mas não. Nietzsche contesta o valor absoluto dos actuais “Bem” e “Mal”, mas ao mesmo tempo advoga a descoberta dum fim universal para a humanidade: “Até ao momento tem havido mil fins diferentes, porque houve milhares de povos (…) O que falta é um fim único. A humanidade ainda não tem um fim.” E Nietzsche vai ainda mais longe: “Se a humanidade sofre por lhe faltar um fim, não será porque ainda não existe humanidade?”
Ou seja, Nietzsche conclui que os actuais conceitos de “Bem” e “Mal” são relativos. E são-no sobretudo porque advêm duma putativa revelação. Mas este relativismo é, para Nietzsche, uma fraqueza e não deve por isso ser um objectivo. O objectivo deve estar em ultrapassar tamanho relativismo, alcançando valores absolutos que substituam os actuais valores relativos.
Quem o conseguir fazer será, na opinião de Nietzsche, o super-humano. Não o super-humano enquanto um herói, mas o super-humano enquanto um “povo”.

Agora voltando a mim. Esta busca dum universal é algo que me preocupa. Eu não nego um Deus criador. Mas tenho dificuldade em aceitar um Deus revelado. Porque o Deus revelado é diferente do Deus que cria. O Deus que cria, cria. O Deus revelado transmite valores e transmite noções de “Bem” e de “Mal”.

Já fiz a minha introspecção e já concluí que talvez seja por razões bem freudianas. Mas não consigo aceitar que essas noções possam ser transmitidas pelo Criador. Para mim o Criador criou e pronto. O resto é connosco.

Aliás, sou imperialistamente não relativista. Há valores que para mim são absolutos e que têm de se universalizar. Estou consigo, indubitavelmente: são valores ocidentais de raiz cristã. O meu receio é tão só o de não saber se para isso a Europa e o ocidente terão de soçobrar. Soçobrar tal qual teve de soçobrar o império romano para que o humanismo cristão o pudesse afinal reformar, a ele (império romano) e à barbárie.

Já não é mau termos uma Declaração Universal dos Direitos do Homem. Uma declaração que é afinal uma afirmação não relativista e claramente de origem cristã. O “Amai-vos uns aos outros” foi uma frase revolucionária sem a qual não teria havido nem isto nem muito daquilo que de bom se tem alcançado.

Não tenho qualquer necessidade auto-flageladora tão em voga nos nossos dias pelo facto de ser ocidental.  Tão pouco renego a base cristã do meu pensamento e dos meus valores. Não há Ocidente sem cristianismo. Cada um poderá interpretar como queira a afirmação de Cristo de que é o filho de Deus  (porque afinal o que ele diz é que todos somos).

Dizia não me envergonhar de ser ocidental. Antes pelo contrário. Com os erros inerentes a qualquer sociedade de homens, elevou-se o mundo a alturas de desenvolvimento material e espiritual que jamais haviam sido alcançadas.

Hoje, avançava eu mais umas páginas da magnifica obra de Robert Musil,  “O Homem sem Qualidades”, quando subitamente sintetizei muito do que tenho vindo a pensar nos últimos tempos. Foi quando julguei ter percebido o sentido real daquela obra.

O que ali está patente é um conflito muito ocidental. O conflito entre ideal e acção. Entre espírito e matéria. Entre essência e existência. Tudo naquela obra monumental anda em torno deste conflito.

E dei comigo a pensar: a História do Ocidente é a História deste conflito! Um conflito que temos procurado resolver de diferentes formas.

Foi em torno deste conflito que andaram Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Este é o conflito mal resolvido por Descartes entre res-cogita e res-extensa. É este conflito que Maquiavel procura resolver quando fala nos “fins” que justificam os “meios”. Este é o conflito entre Jesuítas e Janesistas. É para tentar resolver este conflito que Kant escreveu as duas críticas da razão, a pura e a prática. O debate entre a dialética idealista de Hegel e a materialista de Marx é sobre este tema. Todos os existencialistas, a começar em Kirkgard e Heideeger e a acabar em Sartre procuram também dar resposta a isso. Mesmo na psicologia: Freud procura encontrar causas materiais para o comportamento, causas que neguem a alma (e a sua preocupação em reduzir tudo a uma questão sexual mais não significa do que procurar uma glândula do comportamento: uma causa material que não espiritual), da mesma forma que, em sentido oposto, Jung procura encontrar um processo “científico” de comprovar a alma.

Mas no fundo, bem lá no fundo, a culpa será dos Gregos e de Platão com aquela história do mundo das ideias e do mundo das sombras. Lá dizia Nietzche que o cristianismo é a forma popular de platonismo.

E tudo porque há uma coisa que para nós ocidentais parece difícil de compreender (para mim é, infelizmente). É que o mundo é talvez simultaneamente indiviso e diviso. E talvez só o pensamento mitológico seja capaz de nos pôr em conformidade com tamanha divisão da indivisibilidade.

De Prometeu a “Adão e Eva” está sempre lá a questão: somos alma condenada à matéria devido a um qualquer pecado original. Mas no fim voltamos a ser aquilo que fomos: alma em estado puro, livre da matéria. E voilá: o mito deixa “limpos” os pratos que a razão não consegue deixar de sujar.

Com o renascimento começamos a centrar-nos nos sentidos. Com o século XVII na razão. Com o século XVIII e XIX matamos Deus em nome do deus homem.

Li recentemente uma edição de uma série de conferências que George Steiner deu nos anos setenta. O tema era “A Nostalgia do Absoluto”. Não que seja muito original: Jung disse praticamente o mesmo antes de Steiner (onde Steiner inova é na análise que faz da psicanálise de Freud, do marxismo e da sociologia de Levy Strauss como teologias substitutas). Mas estas conferências sintetizam tudo duma forma muito clara. Matamos Deus, porém a morte de Deus teve um impacto brutal porque passamos milhares de anos a acreditar Nele(s). E de repente sentimos um vazio que não é fácil de preencher.

E agora digo eu. Bem pode Nietzche bradar pelo super-humano. O tal que conseguirá ir para além do bem e do mal de revelação divina. O tal que conseguiria fugir dessa revelação divina e criar-se a si mesmo. Bem pode Nietzche fazê-lo porque Nietzche sabia e dizia-o: a capacidade para auto-criação (no sentido figurado) não é para todos. É para a elite (pelo menos é esta interpretação que dou ao termo que ele usa: aristocracia). Mas nesta época de populismo e populistas já sabemos qual é o papel obscuro que está reservado às elites.

Bem pode pregar o único líder digno desse nome que o Ocidente ainda tem. Bem pode pregar porque prega no deserto por ser populistamente pouco atrativo quando comparado com o antecessor.

E por falar nele, o primo António tem aí a edição zero do meu livro “Amanhã o Futuro”. Tudo termina num sonho. Ao longo do livro o personagem principal foi testemunha dum Ocidente fraccionado e sob o signo do relativismo. E no fim ele tem um sonho. E nesse sonho ouve umas palavras distantes. Umas palavras em italiano com sotaque alemão: “Il relativismo, cioè lasciarsi portare qua e là da qualsiasi vento di dottrina, appare come l’único atteggiamento all’altezza dei tiempi odierni. Si va constituendo una dittadura del relativismo che non riconosce nulla come definitivo e che lascia come ultima misura soli il próprio e le sue voglie”. Este excerto é do derradeiro discurso do Cardeal Ratzzinger. No discurso seguinte já não havia cardeal Ratzzingar mas Papa Bento XVI.

No fundo a nossa força civilizacional esteve (e está?) assente na razão. E ao mesmo tempo é a razão que nos põe neste eterno conflito entre o mundo das ideias e o mundo dito das sombras.

Talvez tenha sido o oposto disto que está a atrair ao oriente alguns ocidentais que sentem a tal “Nostalgia do Absoluto” (alguns saberão o que estão a fazer, a maioria será por pobreza de espírito… com sorte talvez sejam eles a contagiar em vez de serem contagiados). É que as filosofias/religiões orientais não procuram resolver este binómio. E por uma razão muito simples: este é um conflito que para eles não existe. É-lhes tão incompreensível a existência deste conflito como para nós, ocidentais, é incompreensível a sua ausência.

Enfim, somos ocidentais. Ocidentais com o que tem de bom ser ocidental. E ocidentais com o tem de mal ser ocidental. E lá está: Zaratrusta conheceu o bem e o mal de muitos povos e percebeu que o que é bem para uns é mal para outros.

Um abraço amigo

Zé Luís