terça-feira, 22 de março de 2016

E DEPOIS DE BRUXELAS?




Desde 2001 que estamos a combater o terrorismo, baseados na doutrina de Bush: identificar o "inimigo" (por vezes imaginariamente) e atacá-lo. Com 15 anos de aprendizagem, não seria o momento de percebermos que a estratégia não funcionou? Não seria o momento de nos centrarmos em identificar e apoiar o aliado?

Os terríveis atentados de Bruxelas seguem-se a uma série de outros em território europeu que fustigaram sobretudo a França. A reação a esta ameaça está a gerar uma onde de apelos à guerra e ao extermínio dos radicais muçulmanos, “sejam ou não sejam europeus”, como li num dos muitos posts que têm circulado nas redes sociais.

É certo que os criminosos têm de ser perseguidos e sentenciados. Mas, será que a estratégia mais eficaz é essa obsessão no ataque ao inimigo?

Esse foi o modelo de Gorge Bush que, depois dos ataques de 11 de Setembro, iniciou um discurso de características radicalmente bélicas. Usou expressões como “Cruzada contra o terror”, “Acabou o tempo da compaixão” (ONU, Nov. 2001), “Temos de levar a batalha até ao inimigo” (West point , Junho 2002). 

Assente na ideia de que existiria um “eixo do mal”, esta base escatológica do discurso é totalmente marcial: o mal é o mal e com este absoluto é impossível definir qualquer via reconciliadora. 

Conhecemos os resultados desta política. Primeiro no Afeganistão (reconheça-se que neste caso em legitima defesa) e depois no Iraque, espécie de pecado original de tudo aquilo por que estamos a passar neste momento, incluindo os recentes ataques de Bruxelas e a onda de refugiados. 

Esta é uma espiral em que a Europa não está isenta de culpas: O apoio irrefletido e apressado à chamada “Primavera Árabe”, transformou a África mediterrânica num caldo de instabilidade e num berço fácil para a expansão de todo o tipo de radicalismos. A embriaguez atingiu o zénite com as loucuras líbias do Sr. Zarkozy, amplamente respaldadas por outros líderes europeus.  

Em 2011 tive oportunidade de viajar pelo próximo oriente e de passar vários dias em zonas que estão agora dominadas pelo denominado Estado Islâmico. Percebi que na maioria são populações de pequenos comerciantes integradas na ordem mundial, mas extremamente frágeis ante qualquer ataque ou pressão violentista. Outros são presa fácil da mensagem do terror: unem a religiosidade a uma grande ignorância e têm uma condição social assente no exercício de atividades económicas instáveis. Um beduíno que fazia as vezes de cozinheiro numa caravana com a qual andei pelo Sinai, dizia-se defensor do nazismo e perguntou-me se Portugal era o país de Hitler... Às objeções que lhe colocava, respondia sempre com a mesma frase lapidar: “The war is necessary”.

Desde 2001 que estamos a atacar o terrorismo, baseados na doutrina de Bush: identificar o "inimigo" (por vezes imaginariamente) e atacá-lo. Com 15 anos de aprendizagem, não seria o momento de percebermos que a estratégia não funciona? Não seria o momento de nos centrarmos em identificar e apoiar o aliado?

Por muito que a situação europeia seja aterrorizante, as principais vítimas desses mesmos movimentos não estão na Europa. O Daesh nasceu e cresceu dizimando populações nesses territórios maioritariamente muçulmanos que a nossa imperícia transformou em terras de ninguém, abrindo-lhes um caminho que rapidamente aproveitaram.

Uma estratégia baseada na identificação do aliado local e não do inimigo, implica apoiar as instituições a repor o Estado onde ele desapareceu, significa incentivar organismos locais que possam montar teias de solidariedade e passa por apoiar com recursos e conhecimento movimentos sociais e até religiosos que contribuam para reconstruir aquilo que ajudamos a destruir. 

Se dum lado as populações veem o vazio e do outro o Daesh, não lhes resta alternativa. Cumpre-nos focar a nossa atenção em dar-lhes essa alternativa, em vez de usarmos mais e mais dessa  receita militarista que tanto tem falhado. 

É que, de outra forma, a ameaça que nos toca à porta é dupla. Como bem notou Georgio Agamben, comentando Foucoult: “Um Estado que tem a segurança como única função e fonte de legitimação, é um organismo frágil; pode acabar por ser tentado pelo terrorismo a tornar-se ele mesmo num terrorista”. Essa sim, é a grande ameaça!



Luis Novais

segunda-feira, 21 de março de 2016

DA PÓS-MODERNIDADE À INMODERNIDADE





Para passarmos definitivamente da pós-modernidade à inmodernidade,  talvez falte apenas cair um dos pilares: A separação de poderes e a crença numa justiça independente. 

Sendo descendente de múltiplas tradições, o modelo de governança da polis que as democracias ocidentais de hoje concebem, tem as suas raízes mais diretas em pensadores como Locke (1632-1734), Montesquieu (1689-2755) e Rousseau (1712-1788). Se os dois primeiros partiram da matriz grega para recriar a teoria da organização do Estado moderno, o terceiro refundou o princípio da cidadania como fonte legitimadora do poder, abalando de um só golpe o modelo divino parcialmente herdado do império romano, incubado na Idade Média e com auge na corte de Versalhes.  

É muito importante que tenhamos em mente que não há civilização sem consensos basilares: Um modelo organizacional, uma fonte de legitimação do poder e uma ética. Quando estes pilares civilizacionais perdem a coerência, o modelo cai em abismos anunciadores de que a História nunca tem fim e que nem sempre caminha para melhor.

Na civilização ocidental moderna, a ética tem origem greco-cristã e assenta no humanismo, seja religioso, seja racional; é esta base que fundamenta a Declaração Universal dos Direitos do Homem como um consenso civilizacional, pelo menos nos seus princípios mais basilares. Quanto à fonte legitimadora do poder, a libertação gradual do indivíduo que se veio verificando desde a revolução protestante e a necessidade de ajustá-la à vida em sociedade, levou à concepção do célebre “Contrato Social”, um modelo em que a legitimidade já não desce dum topo transcendente para uma base sem participação, mas duma base consciente, para um topo imanente. 

O imperativo do “eu” participante levou à necessidade de especular um modelo organizativo que respeite a ambição e a felicidade individuais, sem destruir a coesão social. É aqui que entram Locke e Montesquieu, com o princípio da separação dos poderes, que é a Teoria da Organização da nossa democracia e que garante que nunca ninguém possa ter tanto poder que lhe permita destruir o equilíbrio pretendido.

Temos um breve retrato da modernidade, se a isto somarmos algumas substituições: a fé pela racionalidade, a teologia pelo método científico, a igreja pela universidade. 

No pensamento de Rousseau, Emílio era naturalmente bom e por isso havia que educa-lo como um homem livre que possa desenvolver-se de dentro para fora, não como um discípulo submetido a uma disciplina rigorosa e imposta. Fundados no modelo platónico, para os iluministas o “Bem” estava ao nosso alcance e era impensável que houvesse crime e tivesse de haver castigo numa sociedade com liberdade e racionalidade.

No seu “Viagens de Guliver” (tão injustamente infantilizado), Jonathan Swift (1667-1745) é um bom espelho da dicotomia entre o bom racional e o mau irracional. Que melhor caricatura duma corte europeia, do que aquela sociedade de seres pomposamente minúsculos? Todo um Lilipute de disputas e guerras entre o partido dos que acham que os ovos escalfados se devem abrir pelo lado redondo e o dos que defendem o lado elíptico. Mas a mais significativa das “Viagens” é, em minha opinião, a que Guliver faz ao país dos Houyhnhnms, seres equestres dotados duma verdadeira racionalidade e que, por isso, alcançavam a verdade e dispensavam instituições complexas e nebulosas que “eram claramente fruto da nossa falta de razão e, por consequência, de virtude, porque para governar uma criatura racional basta apenas a razão”.  

Criados os Estados Unidos da América, passada a Revolução Francesa, desenvolvendo-se a democracia à inglesa, instauradas as independências americanas, o iluminismo deixa de ser uma pregação teórica: Passa à fase de experimentação e, depois, de hegemonia. É então que, um-por-um, foram caindo todos os seus axiomas.

O romantismo, todo ligado às paixões e à alma, é um primeiro sinal anunciador da crise. Logo depois, as reações realista e naturalista, formadas no cadinho da ciência e da racionalidade, acabariam sim por criar personagens multicotómicos e, portanto, incoerentes, incapazes de praticar a racionalidade idealizada. João da Ega, o alter ego do autor, é um bom espelho desse homem que, apesar de dotado duma ética racional, é incapaz de ter outro comportamento que não seja dominado pela paixão do momento.

Entretanto ia-se dando a revolução psicanalítica, tão bem anunciada que ela foi pelo mais percursor dos escritores: Dostoievski. Deixávamos de ser conscientes do que somos e, tal qual essa espécie de anti-Emílio que é o Gregor Samsa de Kafka, metamorfoseamo-nos em insetos que já nem se preocupam com a sua condição asquerosa, mas antes em cumprir o papel que lhes é predestinado pela sociedade: Caía por terra qualquer utopia de liberdade individual.

Pouco depois desabava outro dos mitos da modernidade: Nas fétidas trincheiras da primeira guerra ficava claro que os assépticos laboratórios e a liturgia do método experimental, em vez de criarem um homem novo e bom, levavam a uma destruição histórica. A ciência perdia o papel imaginário de guardiã da bondade humana e, simbolicamente, o Nobel da química de 1918 foi entregue a Fritz Harber (1868-1934), o mesmo que desenvolveu o gás de cloro que em Yprès, 1915, precisou de apenas cinco minutos para matar 5.000 soldados.

Sem Ser e sem ser, perdida a ciência, ia-se perdendo a crença do homem em si e na sua capacidade para se governar. Uma vez mais, as crises filosóficas foram prenúncios das crises económicas que as adensariam. A leste, o cheiro da pólvora sublimava-se num novo regime, que já não tinha o cidadão mas a ciência como fonte de legitimidade. A ocidente, criavam-se todas as condições para o bacanal fascista e nazi.

Ao mesmo tempo que em Paris a modernidade se transformava em modernismo nas orgíacas delícias um dadaísmo em que ter sentido já não era preciso, em Lisboa um modesto empregado de escritório de lunetas e bigode, fechava-se numa mansarda desmultiplicando-se em alucinadas personagens. A unidade estava perdida e, com ela, a verdade universal; não será difícil entender quão traumático isto foi para uma civilização que, gerada na Península Ática, se desenvolveu sobre os pilares dessa crença metafisica entre não ser e Ser, entre sombras e luz, entre contingência e alétheia.   

Já acabada a segunda guerra, procuram-se colar os pedaços. Os realistas refugiam-se no mundo mágico, numa tentativa de unir o mito à ciência, o interior da caverna platónica ao seu exterior. Na angústia pós-moderna, não há verdade e nem sequer verdades, apenas imagens, em que o verdadeiro e o falso já não contam, se não a ideia que deles se faz. A aldeia global é uma nova metamorfose, em que a comunicação substitui a ciência, em que não interessa o que é mas o que se faz crer, em que e essência é substituída pela imagem. Entramos nessa “Civilização do Espetáculo” que Vargas Llosa descreve, em que ser é igual a ter fama.

Assim como a universalização da Igreja romana a corroeu por dentro e nos conduziu à libertação iluminista, a universalização da ciência corrompeu-a. Já não acreditamos que o cientista esteja pelo progresso, mas pela ganância. A crise de 2008, o desfalque de corporações à prova de qualquer dúvida, a falência de países inteiros; tudo isto foi um golpe fatal na crença que ainda restava no nosso modelo institucional. Em “Inside Job” Charles Ferguson desnudava a forma como universitários, políticos e jornalistas montaram uma conspiração medonha nas costas do cidadão, mas que cairia com todo o peso sobre os seus ombros. Gerava-se uma descrença fatal em qualquer espécie de elite, uma descrença que foi potenciada por uma sociedade em rede, ávida por destruir a intermediação que a estava a destruir. As convulsões sociais nascem espontâneas e imprevisíveis; na Plaza del Sol em Madrid, só o cidadão anónimo tinha direito à voz, qualquer participação política anteriormente conhecida era rapidamente silenciada e as tentativas de protagonismo assobiadas.

Para passarmos definitivamente da pós-modernidade à inmodernidade,  talvez falte apenas cair um dos pilares: A separação de poderes e a crença numa justiça independente. A “Sociedade do Espetáculo” é autofágica, mas os incautos têm a cegueira dos ávidos. Processos que antes se aprofundavam entre contraditórios dentro dos claustros dum tribunal, caem de repente na praça pública e são debatidos fervorosamente nas redes sociais. Aos poucos a justiça vai-se transformando num grande centro comercial fornecedor de crimes à medida, num talho expiatório, e o cidadão vê-a com a mesma soberania que o consumidor tem sobre o vendedor. Todos sabem se Carlos Cruz teve ou não teve sexo com menores, se os pais da pequena Madeleine são ou não são os culpados, se Lula é ou não é corrupto, se José Sócrates devia ou não devia ser preso preventivamente.

Ansiosos, os agentes do poder judicial vão caindo na tentação: querem também o direito a ser estrelas, querem também participar do festim, querem sair vencedores deste reallity show em que vivemos e que caminha a passos largos para a grande final. E quanto mais vai sucedendo, menos o circo confia na justiça. O concurso vai no adro, a tentação é muita e a embriaguez ainda agora começa: juízes que deixam de julgar para protagonizar, que usam como instrumento de poder pessoal as faculdades que o contrato social lhes deu, que abrem o segredo dos processos de forma precisa e seletiva. São talvez inconsciente de quão ilegítima e perigosa é esta atitude, de quanto podem abalar o último pilar credível do Estado de Direito. 

Aconteceu em Portugal com José Sócrates e está a acontecer no Brasil com Lula da Silva. Independentemente dos personagens, independentemente duma culpa que deve ser averiguada, independentemente duma punição que deva ser aplicada. 

Todas estas manobras são juridicamente certas ou erradas? Estão ou não estão de acordo à lei? Quando aquilo que está em causa é o último pilar da democracia ocidental, badamerda ao direito e que entre a filosofia: Não há tempo para discutir miudezas jurídicas.

A pós-modernidade está em estertor e com ela todo um modelo que nos foi legado. Espero que não nos reste tentar adivinhar a inmodernidade.


Luís Novais

sábado, 27 de fevereiro de 2016

OS BETINHOS PROVINCIANOS DO BLOCO DE ESQUERDA



E aí está, como um cartaz pretensamente feito para combater a intolerância, se torna num caso de estudo de intolerância. Entre os que pensam diferente, ainda  ninguém foi tão longe, mas estes são tão básicos como esses outros, os que dizem “paneleiros”.

Sou alguém que se foi fazendo pelo contacto com a diferença. Já cruzei as areias do Sinai numa caravana de muçulmanos que paravam para orar, coabitei com beduínos em cavernas da Jordânia, foi com tuaregues que conheci o Saara, assisti aos “pagos a la tierra” dos camponeses andinos, um balobeiro da Guiné Bissau leu o meu futuro nas entranhas duma galinha acabada de matar. Em Israel e na Palestina, tive a oportunidade de conhecer o ponto de vista de uns e de outros, entrando nas respetivas casas, tomando em família cafés árabes e chás verdes com menta, assim como estive em casa de árabes cristãos. Já entrei em sinagogas, mesquitas, igrejas cristãs, e até já fui capaz de levar uma amiga estrangeira a visitar Fátima.

Também já passei por diversas comunidades campesinas da América Latina e na amazónia coabitei com nativos Yaguas, Ashanincas, Machiguengas e Awajun, entre outros. Os deuses não estavam ausentes e aos deuses se orava, cada um à sua maneira. 

Eu não, que não tenho Deus a Quem reze. Considero-me um descendente do racionalismo iluminista, com os toques sociais que lhe deram Proudhon, Bakounine e, em certa medida, Marx. Sou comunitarista no que respeita à teoria da organização e social-democrata na ideologia. Não acredito na revolução, prefiro a reforma, que vai mais lenta mas mais longe. Também tenho em mim todas as crises da modernidade e da pós-modernidade, que me transformam num caldeirão de ideias e conceitos por vezes difíceis de conciliar. Talvez tenha sido essa necessidade de conciliar os meus eus, que me fez aprender a respeitar o outro, independentemente de qualquer conceito, apenas porque é. 

Se houve algo que aprendi na profusão de culturas com que me cruzei, foi que todos podemos conviver. Aprendi que os desejos de paz professados por alguns betinhos urbanos, não se fazem com proclamações, mas ali, no terreno, sendo capaz de transformar a diferença em aceitação e a aceitação em enriquecimento cultural mútuo. 

Essencial é respeitar, essencial é não colocar o fundamentalismo filosófico ou religioso à frente da antropologia.

O desrespeito pela idiossincrasia, pelas crenças alheias, é o ponto de partida para a intolerância. Alguns somos incapazes de aceitar o outro, porque ele é o desconhecido, porque ele é visto como ameaça. É isso que torna qualquer atitude discriminatória numa postura profundamente provinciana, típica de quem não tem mundo, típica de quem não aprendeu a importância de aceitar e de respeitar. 

O cartaz dos dois pais de Cristo resume essa atitude numa só imagem e em meia dúzia de palavras. Não nego o direito que têm a fazê-lo e até a ir muito mais longe, já disse que sou filho do iluminismo (terei dois pais, também…) e tenho a liberdade de expressão entre os meus valores supremos. 

Reconhecendo que se trata dum ato em si mesmo legítimo, não me nego o mesmo direito: Concluir e dizer que há alguns betinhos urbanos que melhor estariam a ganhar mundo, concluir e dizer que há certos provincianos que gostam de proclamar paz mas que se comportam como quem gosta de guerra, concluir e dizer, enfim, que há uma grande diferença entre a ideal tolerância que alguns professam e a atitude com que se consubstanciam. 

E aí está, como um cartaz pretensamente feito para combater a intolerância, se torna num caso de estudo de intolerância. Entre os que pensam diferente, ainda  ninguém foi tão longe, mas estes são tão básicos como esses outros, os que dizem “paneleiros”.



Luís Novais