quinta-feira, 12 de abril de 2012

Mário Vargas Llosa e a Utopia Liberal


Sou duma geração que foi educada no princípio da competição, que foi preparada para um desenfreado mata e morre ritual que, prometiam-nos, nos traria o progresso, que, diziam-nos, seria fonte de bem comum. Até já acreditei nisso, confesso. Hoje, estou consciente da mentira em que fui formado. Hoje acredito que podemos trocar a competição pela cooperação, a caridade pela solidariedade, a assistência pelo mutualismo. E nunca, jamais abraçar essa utopia que é também a de Mário Vargas Llosa, essa que é talvez a maior mentira de todos os tempos, a utopia liberal.

Ontem assisti em Lima a um colóquio sobre “Literatura, Poder e Liberdade em Vargas Llosa”, onde, para além do próprio Nobel da literatura, participaram Efraín Kristal, da Universidade da Califórnia e o historiador mexicano Enrique Krauze.

Na sua intervenção, Krauze procurou estabelecer uma periodização da obra do escritor, que considerou dividida em três fases. Primeiro, os anos sessenta, em que abraçou a causa socialista, com obras como “A Cidade dos Cães”, “A Casa Verde” e “Conversações na Catedral”. Seguiu-se, na década de oitenta, uma fase de desencanto com as ideias de esquerda e um progressivo caminhar para o modelo liberal; nesta fase abordou as fragilidades da sociedade latino americana e a facilidade com que esta podia cair nas mãos de autocracias brutais e corruptas; fê-lo em livros como “A Guerra do Fim do Mundo”. Por último, dos anos noventa até à atualidade, um certo rumo ao pessimismo, parecendo descrer da possibilidade de mudar o panorama social, ainda que nutrindo algum afeto por heróis que, sem êxito, o tentam fazer, como sucede no seu último livro, “O Sonho do Celta”.

Confesso que tinha alguma expetativa sobre a forma como Vargas Llosa comentaria esta abordagem e não fiquei desiludido com a maneira como o fez: clara, corajosa e brilhante, ainda que discorde da abordagem ideológica que defendeu e, sobretudo, da sua justificação.

Relativamente ao seu socialismo dos anos sessenta, explicou-o de uma forma geracional: face às ditaduras brutais que assolavam a América Latina, o Socialismo parecia ser a única forma de vencer o monstro. Isto para uma juventude que descria profundamente que o capitalismo fosse compatível com a liberdade uma vez que, seguindo Sartre, cria não ser possível que houvesse liberdade sem igualdade económica. “A vitória da Revolução Cubana teve um impacto épico em todos nós. Aqueles guerrilheiros que foram para as montanhas sem nada e que conseguiram destronar uma ditadura corrupta, pareciam anunciar a possibilidade de um futuro mais justo”.

O seu progressivo afastamento do Socialismo deu-se com a consciencialização de que o bloco soviético, “estava muito longe de nos trazer a justiça social que nos prometia e que, pelo contrário, não passava de uma autocracia brutal. Assistimos à invasão da Checoslováquia, começávamos a saber o que se passava em Cuba, ouvíamos o que nos relatavam os primeiros dissidentes do bloco socialista… tudo isto contribuiu para que me afastasse dessas ideias e para que percebesse quão perigosas são as utopias, para que compreendesse também quão perigosos são alguns indivíduos que, armados de uma ideia, vão para as montanhas e, pela força das armas, tentam impô-la a toda a sociedade” (sublinhados meus).

Deste desencanto, passou à sua fase seguinte: “Compreendi que o estabelecimento duma verdadeira Democracia seria a solução para a América latina e, progressivamente, comecei a abraçar o ideal liberal”. Neste abraçar do Liberalismo, Vargas Llosa realça que não se refere apenas ao liberalismo económico, mas também ao político. “Dizem-nos que, por exemplo, Pinochet foi liberal na economia porque defendeu as empresas privadas. Todos sabemos que não, pois tratava-se duma ditadura e portanto havia um grande protecionismo de certos grupos e interesses; não era possível que o mercado funcionasse livremente. Quando falo em Liberalismo, falo na importância do económico, mas também do político, porque aquele não pode ser verdadeiro sem este”. E outra vez: “Enfim, eu compreendera que o marxismo era incompatível com a liberdade e que as utopias são muito perigosas. Que houve gerações que se perderam indo para as montanhas lutar em nome dessas utopias”.

É precisamente no estabelecimento desta fronteira entre utopias para um lado e Liberalismo para o outro, que discordo de Mário Vargas Llosa e o porquê dessa discordância passa muito pela reflexão filosófica, mas também pela análise empírica desta crise em que nos mergulharam, tanto à Europa como aos Estados Unidos; uma crise que, em minha opinião, é o fruto da maior utopia do Século XX: o Liberalismo.

Vejamos.

A legitimação do Liberalismo económico resume-se numa frase de Adam Smith. "não é da bondade do padeiro, do marchante ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho que têm em promover o seu auto-interesse", ou seja, como se depreende da demais leitura de Smith, o bem comum procede do egoísmo. Isto é: a atitude moralmente certa está em que cada um se centre no seu interesse particular, já que é desse recentrar que provém o bem comum.

Isto foi uma revolução copérnica da delimitação entre bem e mal: até aí, toda a moral procurara transformar o ser individual em ser social, aproximando o mal daquele e o bem deste, ou seja, imoralizando a egotismo e moralizando a socialização.

Ora, não é preciso estudar muito aprofundadamente as causas primeiras da atual crise, para concluirmos que foi esta libertação do egoísmo que a originou. Administrações de bancos e de grandes grupos económicos, destruíram capital e puseram em risco as sociedades que geriam, porque os gestores se centraram no seu interesse particular, ao mesmo tempo que eram movidos por acionistas que, também eles, não estavam interessados noutra coisa que não fossem os seus ganhos de curto prazo; acionistas para os quais o futuro se resumia ao que pudessem especular em bolsa, graças às perigosas manobras a que, direta ou indiretamente, incentivavam os gestores, cujos as praticavam de bom grado, porque fonte de grandes salários e prémios.

Quando esta filosofia de gestão chega à banca, o resultado é obvio, já que se trata de um setor onde é facílimo apresentar excelentes resultados de curto prazo que mais tarde se transformam nos sobeja e tristemente conhecidos desastres. Desastres de que homens como Bernard Madoff foram meros bodes expiatórios das grandes casas bancárias, essas mesmas que lhe entregavam investimentos sem fazer perguntas, já que ele se tornara numa fonte de resultados imediatos e, portanto, de valorização de ações e de justificação de prémios salariais, sem que os gestores dessas mesmos grupos financeiros tivessem de sujar as próprias mãos e arriscar a prisão. Para usar uma linguagem do meio, foi um consciente (sublinho o consciente) outsorcing do sujar de mãos, Madoff.

É por isso que eu defendo que a crise atual não é económica mas sim filosófica. É filosófica porque assenta na filosofia liberal e no respetivo princípio moral de que podemos e devemos ser egoístas se quisermos contribuir para o bem comum. É-o também porque essa filosofia acabou por minar essa ética própria que tivera um capitalismo ainda emergente no Sec. XVIII e até no XIX e que Max Weber tão bem analisou (isto mesmo abordei num outro artigo: “o Capitalismo sem o Espírito do capitalismo”).

Por último, o liberalismo político. Aceitando, como aceito, que o marxismo não é fonte de libertação, e nisto estando próximo do pensamento de Vargas Llosa, tão pouco posso aceitar que o liberalismo político no seu modelo atual possa a ser libertador. Temos a forma como a verdade tem sido ocultada aos cidadãos, temos a manipulação da informação, temos as políticas de comunicação, temos a consciência que até mesmo os estudos feitos pelos templos do nosso tempo que são as universidades, conduzem as suas conclusões em função do interesse de quem os encomenda… Temos consciência de tudo isto e é em nome disto que, se a juventude já não vai matar e morrer em pequena escala nas montanhas para defender uma utopia, hoje mata e morre em grande escala, em cenários de guerra tecnológica, em nome dessa grande utopia dos nossos tempos: a utopia liberal, a ideia de que o egoísmo é fonte de bem comum, e também de que este modelo de liberalismo político é libertador.

Sou duma geração que foi educada no princípio da competição, que foi preparada para um desenfreado mata e morre ritual que, prometiam-nos, nos traria o progresso, que, diziam-nos, seria fonte de bem comum. Até já acreditei nisso, confesso. Hoje, estou consciente da mentira em que fui formado. Hoje acredito que podemos trocar a competição pela cooperação, a caridade pela solidariedade, a assistência pelo mutualismo. E nunca, jamais a abraçar essa utopia que é também a de Mário Vargas Llosa, essa que é a talvez a maior mentira de todos os tempos, a utopia liberal.


Luís Novais

1 comentário:

  1. Acabo de ler a tua reflexão a propósito da conferência de Vargas Llosa cujo percurso ideológico é a demonstração do que é um processo dialético. A "anomia" ideológica da sua síntese prenuncia uma rutura total, da qual poderá resultar algo novo do tipo da trilogia que referes - cooperação, solidariedade e mutualismo. Concordo com Vargas Llosa quando estabelece uma fronteira entre utopia e realidade. A utopia pertence a um universo paralelo que tem por fim repensar a realidade e, neste sentido, tem uma função importantissima.Assim sendo, tenho uma certa relutância em considerar o Liberalismo uma utopia, pois este, como bem o analisas, concretizou-se.

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