domingo, 10 de janeiro de 2016

CULTURA É COSMOVISÃO






Cada vez que entrei numa casa ocidental, que viajei com beduínos no Sinai, que estive com nativos na amazónia, com seguidores de crenças diversas, com professores numa universidade; de cada vez que leio Platão, Santo Agostinho ou George Steiner; cada vez que estudo civilizações que foram e já não são, que vou a um concerto de roque ou de música clássica, que oiço proclamações políticas e filosóficas, que assisto a celebrações religiosas… Cada vez que entro e observo, esta é a ideia a que recorro quando busco perceber o código cultural: Que estratégias seguem ou seguiram para resolver o drama desse dualismo; o eu e o outro?

Eduardo Lourenço deu uma entrevista ao Expresso da semana passada. O mote foi o lançamento em português do livro “Cultura – Tudo o que é preciso saber”, do filósofo alemão Dietrich Schwanitz. Na conversa que manteve com a jornalista Luciana Leiderfarb, Lourenço definiu “cultura” como sendo“o diálogo da humanidade consigo mesma”, uma fórmula com que não concordo, mas que é interessante, pelo menos narrativamente.

O mais aliciante desta definição é que contraria o enciclopedismo patente no próprio subtítulo da referida obra: “Tudo o que convém saber”. Numa sociedade da hiperinformação, o problema central já não é o acesso se não a seleção do conhecimento, e é por isso que as obras facilitadoras de escolhas estão em voga e têm a sua versão popular nos títulos pensados para captar audiências a partir das redes sociais: “10 Lugares que você tem de visitar antes de morrer”, “10 Obras que tem de ler antes de morrer”… e uma data de outros projetos a não perder antes que chegue a meta fatal.

Opostamente à ideia de cultura como tudo aquilo que se deve saber, Eduardo Lourenço apela a Levi Strauss: “Tudo é cultural. Porque o homem é um ser pensante”.

Quando nasceu a cultura? Para Lourenço, com o tédio. Socorre-se de Pascal: “A infelicidade da humanidade é a incapacidade para estar sozinha num quarto. É não se contentar com o que está à sua volta ou com as coisas urgentes que a solicitam e que deveriam ocupá-la. A cultura é, assim, a invenção contínua de respostas para a expulsão do sem sentido”.

Estaria bem se fossemos a única espécie a sentir essa infelicidade da solidão e do tédio, mas é visível que não somos. Se essa produção artificial chamada cultura é exclusivamente humana, devemos procurar naquilo que é exclusivamente humano para lhe encontrar justificante e uma definição.

Enquanto espécie, somos fruto de mudanças climáticas que ocorreram há uns cinco milhões de anos: Recuaram os glaciares, diminuíram as florestas e as savanas ou os desertos conquistaram uma parcela substancial do planeta. O ecossistema florestal deixou de ser suficiente para quantos aí viviam; os mais fortes apoderaram-se do agora escasso território, expulsando os outros para lugares inóspitos. Entre essas espécies estariam alguns símios, que tiveram de adaptar-se ao novo meio. Já não tinham uma árvore de acesso fácil para escapar à voracidade dos predadores e por isso precisavam de antevê-los. A gradual conquista duma posição ereta foi a resposta que encontraram, com todas as consequências estruturais que isso teve na morfologia, nomeadamente na craniana. O cérebro foi tendo mais espaço e ganhou novas capacidades.

Ler as obras de António Damásio, é perceber que somos uma excentricidade da natureza: o nosso cérebro é o único que permite a consciência de ser, o único que origina a criação daquilo a que Damásio chama memória autobiográfica, ou personagem “eu”. Eduardo Lourenço aborda esta questão, é pena que en pasat e não como centro do tema “cultura”: “Se a humanidade tem uma essência qualquer, é justamente ter memória de si mesma”.

O drama é que ganhar consciência do “eu”, implica também reconhecer o “outro”; a unidade cósmica estava perdida.

Creio ser em totem e Tabu que Freud afirmou que para um recém-nascido não há uma separação entre ele, entre o seu corpo, e ela, a mãe, a teta por onde mama. É verdade que a neurologia desse tempo ainda não permitia analisar a raiz desta questão nem à luz da filo, nem à da ontogenia cerebral; mas já então o pai da psicanálise nos fala duma nostalgia desse absoluto.

É interessante verificar como, cada uma à sua maneira, as mitologias procuram enquadrar este drama. Foi quando comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal, que Adão e Eva ganharam consciência de si, que outra coisa não explica a vergonha que sentiram e que os levou a tapar os corpos. Foi essa mesmíssima consciência que determinou a expulsão de um paraíso onde anteriormente estava unido aquilo que o proibido fruto lhes separou.

Viajando até à Grécia antiga, também Prometeu foi agrilhoado por ter oferecido a luz, quer dizer, o conhecimento, à humanidade.

Tudo isto dá uma dimensão antropológica à célebre frase de Sartre: “O inferno são os outros”.

Temos uma característica única: sabemos que somos. Essa é a fonte da nossa grandeza e também do nosso drama. A natureza é centrada na sua sobrevivência genérica, pobres das espécies que tenham características excêntricas, e nós somos a mais excêntrica de entre as que já pisaram este mundo. Tudo aquilo que com as outras espécies partilhamos, resolve-se facilmente de uma forma natural, inconsciente: O cérebro sabe criar a sensação de fome quando essa alquimia do corpo lhe transmite uma falha energética, as plaquetas coagulam instintivamente em contacto com o ar para impedir uma hemorragia, o coração bate mais ou menos forte em função da homeostasia… E a consciência de nós? E a fragmentação cósmica que implica? E o drama de Adão e Eva? O de Prometeu? Esses são problemas exclusivos da espécie; por isso temos a capacidade mas não sabemos lidar naturalmente com ela. É talvez isso, a cultura: mais do que o diálogo da humanidade consigo mesma, é um diálogo da humanidade com o outro, com o cosmo. Cultura será, então, a forma artificial a que recorremos para resolver um problema que a natureza nos deu, mas de que a natureza não cuidou.

Cada vez que entrei numa casa ocidental, que viajei com beduínos no Sinai, que estive com nativos na amazónia, com seguidores de crenças diversas, com professores numa universidade; de cada vez que leio Platão, Santo Agostinho ou George Steiner; cada vez que estudo civilizações que foram e já não são, que vou a um concerto de roque ou de música clássica, que oiço proclamações políticas e filosóficas, que assisto a celebrações religiosas… Cada vez que entro e observo, esta é a ideia a que recorro quando busco perceber o código cultural: Que estratégias seguem ou seguiram para resolver o drama desse dualismo; o eu e o outro?

Nessa caso, cultura é cosmovisão.

Luís Novais

Foto: iamanilozturk (domínio público)


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