Ser e horror cruzaram-se há 20.000 anos: Nasceu a arte.
A arte cria-nos a ilusão de que é possível controlar o incontrolável mundo. Ao artista,
transforma-o numa metáfora de Deus. Ao público alimenta-lhe a ideia de que a vida
não é tão horrivelmente indeterminada, oferece-lhe a salvadora convicção de que o ser “nós” pode ser fonte de
criação e domínio dos elementos, ainda que por interposto criador, mas humano como os demais.
Transformados em metáforas de Deus ou de deuses, quando criamos
aplacamos a angústia da existência consciente. Fazemos mundos sonhados e por
nós delimitados, superando a opressão do caos.
As artes plásticas, a literatura, quer na prosa quer na poesia, oferecem a mesma sensação do ser
criador que se liberta dum mundo insuportavelmente criado, insuportavelmente
imprevisto e insuportavelmente povoado de “outros”.
Música e dança seriam também uma resposta a esta insustentabilidade, acrescentando-lhe a integração. Quando ouvimos ritmos que identificamos e que
escutamos repetidamente, o futuro torna-se previsível, ao mesmo tempo que nos
incorporamos na comunidade dos que escutam a mesma música, dos que dançam a mesma cadência.
Se nada é mais humano do que a consciência individual de sê-lo, se essa é a
nossa grandeza e o nosso drama, então nada é mais humano do que a arte, umas
vezes de mão dada com essa outra criação humana, a religião, outras vezes em acesa competição.
Esta é uma perspetiva artística da arte e portanto nada científica. Mas a
mesma arte nasce dum sopro inspirador e é desse sopro que se se faz viva.
Talvez por isso só uma intuição possa explica-la, nem sequer uma filosofia.
Fecho os olhos e imagino o mundo tal qual ele foi para os caçadores
recolectores que há 20.000 anos e pela primeira vez pintaram paredes em
cavernas escuras, esses que também imaginaram e fizeram pequenas grandes estatuetas de pedra. À minha
volta vejo o gelo do último período glaciar e percebo o risco para toda
a existência, a minha, a do grupo, a da espécie. Sinto medo, não
tenho a mínima ideia se amanhã seremos.
Regresso ao aparente conforto e penso que esse foi também o momento. Era preciso juntar o ser intelectualmente consciente com uma ameaça total à sua vida.
Essa junção deu-se na última idade do gelo. Antes já o mundo tivera
condições climáticas extremas, mas faltou-lhe o ser. Depois teve o ser, mas
faltou-lhe a penúria vivida. Ser e horror cruzaram-se há 20.000 anos: Nasceu a
arte.
Luís Novais
Foto: Bisonte de Altamira. c: Janeb13
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