domingo, 12 de novembro de 2017

OCIDENTE EM CRISE



Esta é a crise que enfrentamos. Uma crise que se mascara de várias roupagens, veste-se aqui de crise económica, ali de crise de valores, acolá de crise social. Mas, afinal, por muitas diferentes roupas que lhe vistamos, é uma e única: Uma crise filosófica; esses mesmos fundamentos filosóficos que nos permitiram chegar aqui, entraram num curto-circuito que não estamos a conseguir resolver.

Com uma clara influência das leituras ávidas que sempre fiz dos livros de António Damásio, que tenho em Portugal com pena de não os dispor na minha biblioteca peruana, percebi que a característica filogenética distintiva  da nossa espécie é essa capacidade única que temos: A consciência do eu, baseada naquilo a que o próprio Damásio chama “memória autobiográfica”.

Somos a nossa memória e somos o personagem “eu” que, graças a ela, criamos. Todo o nosso corpo é constante mudança, a matéria que nos compõe é renovação permanente e grande parte dela não era “nós” há uma ou duas semanas. Mas continuamos a ser “eu” e, ao sermos “eu”, parimos o “outro”. Cria-se uma fronteira entre o "mim" e o "não mim", a unidade cósmica perdeu-se no meio da evolução que atingimos.

A mitologia sempre procurou resolver este drama, umas vezes encontrando nele um castigo que temos de padecer, para um dia, redimidos, voltarmos ao eterno absoluto. Que é o jardim do paraíso? O que é, se não essa unidade perdida? Essa consciência de quem se atreveu a morder o fruto do conhecimento e, mordendo-o, tomou consciência de si. Adão cobriu-se de Eva e Eva cobriu-se de Adão, porque Adão percebeu que Adão não é Eva e Eva percebeu que Eva não é Adão.

Noutros mitos, Prometeu expia a culpa universal porque foi ele quem deu a luz à humanidade, a luz,  eterna metáfora do conhecimento e da consciência. Essa mesma culpa que será, depois, expiada também por esse outro grande personagem histórico que é Cristo.

Noutras latitudes, os nativos shipibas, da Amazónia, são conhecidos pelas linhas que traçam em todos os seus utensílios, em todos os seus tecidos. Eles creem que o mundo já foi um só todo, unido, sem separação, e essas linhas são a sua eterna procura da união perdida.

Quando entramos na filosofia, pensemos como, na nossa civilização ocidental, o problema foi criteriosamente resolvido por Platão. Somos unos e divididos, divididos na matéria, que é fonte de falsidade, unos e universais nesse mundo das ideias, onde reside a verdade. E é por isso que, para Sócrates, o conhecimento é um lento despertar, um exercício da recordação que trazemos desse mundo que nos transcende e donde viemos. Em Fédon, Sócrates está feliz porque vai morrer, já que, morrendo, acredita que irá regressar à eterna Verdade.

A transcendência e a Verdade universal que aí se encontra, são os dois pilares da sociedade ocidental. Buscamos a verdade porque acreditamos na transcendência. Nenhum sistema ocidental deixou de crer nisso, ainda que tenham variado os modelos e as liturgias para alcançar esse eterno absoluto.

A aventura dos sentidos que foi o renascimento e, posteriormente, o positivismo que se vai paulatinamente afirmando no século XIX, apenas momentaneamente refreado pela reação romântica, vão criando um problema de difícil solução. Já Descartes (1596-1650) o escancarou, quando foi incapaz de encontrar coerente resposta para o contacto entre res cogita e a res extensa. Esse ponto de união seria a busca obsessiva duma geração de pós-cartesianos, que incluiu o faustoso Leibnitz (1646-1716) e o humilde Espinoza (1632-1677). Mas eram respostas insuficientes e a quase infantil teoria Leibnitizana seria, e bem, até ridicularizada no “Cândido” de Voltaire (1694-1778).

Não compreendemos a importância de encontrar uma resposta, se não nos consciencializamos de que qualquer civilização nasce a partir da solução que encontra para o problema filogenético humano, e é por isso que nenhuma se  mantém se deixa de poder suportar-se nesse pilar fundador  que, no nosso caso, é precisamente aquele que Platão cimentou: A transcendência, que reúne o que se separou, e a Verdade que daí resulta.

Nietzche (1844-1900) diria que o cristianismo é platonismo com Deus, e o crescimento cristão no ocidente, numa altura em que o próprio império que o expandiu estava em risco de desagregar-se, como viria a suceder, explica-se pelo caldo cultural em que se tornou num modelo religioso, num modelo de vida e até num modelo de racionalidade. Porque isso é certo: Desde os áticos que o racionalismo se impôs no ocidente e o primeiro desafio da novel religião foi unir pontas que pudessem ligar racionalidade com religiosidade, tarefa que se empreendeu desde São Justino (100-165), com picos sublimes, como aqueles que atingiram Santo Agostinho (354-430) ou São Tomás de Aquino (1225-1274). Desde esses primórdios que estão presentes os modelos platónicos, desde eses primórdios que se procura resolver os respetivos problemas que ficaram em aberto e que se empreende uma síntese entre o mundo racional e o religioso. Sem que os primeiros filósofos cristãos tivessem feito esse esforço, a nova religião jamais atingiria aquele patamar que as elites exigiam para aderirem a algo que, de contrário, seria visto como meramente plebeu e fruto da ignorância.

Se fizermos uma ponte entre a medieval questão dos universais, e a capacidade de Kant (1724-1804) para resolver o paradoxo do absoluto e do contingente, percebemos que foi o professor de Koningsberg quem deu ao século XIX as bases filosóficas essenciais para que pudesse seguir o método científico como nova liturgia de chegada, ou de aproximação, a uma verdade transcendente, condição sine qua non para que o ocidente prosseguisse, sem perder o contexto dos seus pilares fundadores.

Entretanto, muitas coisas foram mudando e, nessa incessante busca pela transcendência, fomos chegando a outras conclusões. A primeira, que de uma mesma realidade se podem fazer diversas “verdades”. A perspectivação modernista, que inclui os ângulos múltiplos de Picasso (1881-1973), ou o desdobrar de personalidades de Pessoa (1888-1935), têm esse significado, tendo-se chegado a extremos de negação dum sentido para tudo, na orgia dadaista, ou no refugio dentro dum mundo interior, subjetivo, na loucura de Dali (1904-1989).

Mas a voragem não ficava por aí. Chomsky (1928 - ) mostrou bem como as técnicas de comunicação começaram a criar um abismo entre o real e o percepcionado, e como a manipulação da mensagem podia criar um real manipulado. E eis que começamos a entrar de frente na angústia pós-moderna, uma crise mental de grandes proporções, se tivermos em conta que esta perda de convicção numa verdade que seja em si mesma, não surge numa civilização qualquer, se não naquela que desenvolveu 2.500 anos de pensamento tendo-a como base para a resolução do mais humano dos problemas, a consciência de nós, com a consequente desfragmentação da unidade cósmica.

Mudo de parágrafo, para dar às frases que se seguem o destaque que lhes quero dar, uma espécie de perspectiva do problema da actualidade: Foi a crença na transcendência que nos obcecou pela procura de uma verdade absoluta, e foi essa procura que nos levou a concluir que a verdade é que a transcendência não existe e, consequentemente, nem sequer a verdade ela mesma.

Esta é a crise que enfrentamos. Uma crise que se mascara de várias roupagens: Veste-se aqui de crise económica, ali de crise de valores, acolá de crise social. Mas, afinal, por muitas diferentes roupas que lhe vistamos, é uma e única: Uma crise filosófica; esses mesmos fundamentos filosóficos que nos permitiram chegar onde chegamos como civilização, entraram num curto-circuito que não estamos a conseguir resolver. E é por isso que andamos perdidos, em busca de novos absolutos, de novas morais que cada grupo ou micro-grupo procura impor absolutamente. O politicamente correto e as vestes que se rasgam contra aqueles que não o seguem, feminismo, nacionalismo, novas religiões, vegetarianos, ascetas, radicais dos direitos animais, neo-espiritualidades, micro-causas, bem intencionadas, mas agigantadas como se fossem o absoluto fundamento... Tudo isto são procuras desesperadas de novos universais, tudo são substituições de um algo que sentimos ter perdido sem que tenhamos bem consciência de quê. Por fim, tudo nada resolve, porque somos uma civilização de absoluto absoluto, e quem assim nasce não se reencontra em parcelas absolutamente emparceladas.

Precisamos urgentemente de voltar aos fundamentos. Precisamos urgentemente de sair da orgia tecnológica em que nos afundamos, para debater o que é ser-se humano e o que é ser-se parte duma civilização. 

Terminemos com uma metáfora. Enquanto em Lisboa se organizava um evento superficial chamado Web Summit, com todo o impacto que significativamente possa ter, em Abrantes fazia-se um Festival de Filosofia. Quantos não souberam do primeiro, e quantos souberam do segundo?



Luís Novais


Foto: A Expulsão do paraíso, Capela Sistina.

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