quinta-feira, 15 de novembro de 2018

NÓS PORTUGUESES, ENTRE UM PAR DE ESTALOS E A SAUDADE



Tantas palavras para bofetada e uma só para saudade?! Para quem é adepto de perguntar, mesmo sabendo que é mais fácil fazê-lo do que responder (ainda que a boa resposta dependa também da boa pergunta), impõe-se: “Porquê?” Porquê sintetizar tudo o que a saudade exprime numa só palavra saudade? Porquê, se até para uma simples bofetada recorremos ao processo analítico e criamos mais de uma dezena de expressões? Quando falamos de saudade, não nos referimos a um acto ou objecto, mas a um sentimento; que revelará dos portugueses a particularidade de tal unificação?

Numa rede social, o meu amigo José Miguel Braga colocou um daqueles comentários aparentemente inocentes, mas provocadores:        “De entre o imenso rol de variações da chapada, temos a muito musical lambada, a insuspeita lostra, a melíflua rabanada e, é claro, a insinuosa ‘puta’. Levas uma puta!

Esta observação originou uma série de respostas com outros tantos nomes alternativos para o mesmo ato de esbofetear alguém. Entre vários, surgiram os seguintes: “Banano”, “tabefe”,”estalo”, “estalada”, “açoite”, “cachaço”, “calduço”, “solha”, “lostra”, “lapada”, “bofardo”, “sapatada”, “lamparina”, “laura”, “galheta”, “bolachada”, "palmada". Falou-se de alguns que desconhecia, como “calduço” ou “muquenco” e até um outro que desconfio pertencer ao domínio do idioleto, neste caso “catracasla”.

Mudando aparentemente de assunto, acabo de ler um interessante ensaio de Onésimo Teotónio de Almeida sobre a “saudade” e a pretensa tendência dos portugueses para padecermos deste sentimento. Com um espírito marcadamente empirista, a que não será alheia a forte influência anglo-saxónica, contesta a visão dos “saudosistas” da “Renascença Portuguesa”, que criaram a chamada “Filosofia portuguesa”: Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e António Quadros.

Na sua argumentação, começa por contrariar ser a língua a fazer um povo, defendendo, ao contrário, ser um povo a fazer a língua. Chegado aqui, nega a visão saudosista de que os portugueses se possam formar a partir da sua língua, desferindo assim um golpe no arreigo de Pascoaes e Quadros pela palavra “saudade”, na qual viram uma (ou a) nascente da identidade nacional.

Uma primeira observação seria que, se a língua não é causa mas consequência, é então um meio para chegar à causa, tal qual um sonho não é o inconsciente, mas nos permite chegar até ele.

Afirma também Onésimo Teotónio de Almeida:  
O conteúdo salvável da intraduzibilidade de palavras, como saudade (…), jaz no facto de ser uma das características do comportamento cultural de cada um desses povos a incidência com relativa frequência desse tipo de sentimento, o que levou à criação dum vocábulo que o denotasse” (167).
Parece então poder inferir-se terem os portugueses uma maior tendência para o saudosismo do que outros povos. Tanto mais, prossegue, “É dado assente da sociolinguística e da psicolinguística que uma realidade frequentemente enfrentada, vivida ou sentida exige um nome por facilidade de referência”. Poderíamos então concluir que este sentimento foi/é particularmente forte no caso dos portugueses.

A resposta de Onésimo é, porém, uma aporia: “Deparei, por acaso, no American English Dictionary com pelo menos duas palavras identificadas como de origem portuguesa e aceites como intraduzíveis pelo inglês: auto-de-fé e cuspidor”. Segue-se a óbvia conclusão: “Estou convencido de que qualquer um de nós rejeitaria a afirmação de que essas realidades fazem parte da e muito menos constituem a alma nacional portuguesa” (168).

Pelo menos uma destas palavras, auto-de-fé, parece confirmar os dois postulados que formulou: Primeiro, é a prática dum povo a formar a sua língua e não o contrário; segundo, ser a incidência particular dum acto (ou sentimento) a levar também esse povo a criar palavras dificilmente revertíveis a outros idiomas.

Partido daqui, observemos que auto-de-fé e cuspidor são sujeitos muito concretos, não correspondendo a sentimentos, enquanto saudade, sim, é um sentimento. Dentro desta lógica, concluiríamos terem os portugueses procurado a palavra para definir um sentimento por eles sentido com particular incidência.

Concluiríamos e fecharíamos se os argumentos se ficassem por aqui, mas não. Pergunta-se o autor se, pelo facto dos árabes terem cinco mil palavras referentes a “camelo”, isso quererá dizer que a camelidade “constitui essência ôntica da língua árabe”. Ou se, tendo os esquimós 10 para neve não seria então de considerar“’a nebelidade’ como constitutivo espiritual dos esquimós”. Num outro exemplo, mais próximo de nós, lembra  as mais de cem palavras para cachaça no Brasil, mas “não lembrará a ninguém apontar a ‘cachacidade’ como a alma nacional brasileira” (169).

Curiosamente, depois inverte o argumento:
O que parece ocorrer na cultura portuguesa relativamente ao uso da palavra saudade é um abuso da sua aplicação, que acaba por levar a um alargamento excessivo da sua extensão ou significado. Quando uma realidade complexa é analisada, descobrem-se nela elementos constitutivos que recebem um nome (…). Foi assim que os esquimós descobriram vários tipos de neve ao lidarem com tanta dela (…). O contacto com um real que se vai diferenciando leva à sua subdivisão e consequente multiplicação de palavras para nomear todos os seus componentes ou variações identificadas (169-170). 
Portanto, ter-se-ia passado o inverso com a palavra saudade: em vez dum processo analítico desmultiplicador desse sentimento geral em diversos estados, chegaríamos a um processo sintético, unificador de diversos estados numa só palavra: 
Mesmo quando essas experiências foram analisadas em pormenor e os autores falaram de sentimentos que a cultura universal de há muito baptizou com nomes próprios, esses autores persistiram em denominar saudade todo esse leque de experiências e emoções humanas (170).
Obviamente, o facto de não terem uma só palavra unificadora dos diversos estados de espírito identificados como saudade, não quer dizer que os outros povos não tenham esse(s) sentimento(s). Por outro lado, se Pascoaes e Quadros consideraram que é a partir da “mónada” língua que se forma o caracter daquele que a usa e não o contrário, será porque a Antropologia e a Linguística não tinham então os avanços de hoje. Contudo, daqui, ou apenas daqui, não podemos partir para a negação da saudade como formadora do carater português: Primeiro, porque, como aponta Onésimo, a língua nasce a partir dum povo; segundo porque, não revelando que apenas os portugueses a sintam, saudade significa que só os portugueses unificaram esses sentimentos num só.

Voltamos ao início: tantas palavras para bofetada e uma só para saudade?! Para quem é adepto de perguntar, mesmo sabendo ser mais fácil fazê-lo do que responder (mesmo dependendo da boa pergunta a boa resposta), impõe-se: “Porquê?” Porquê sintetizar tudo o que a saudade exprime numa só palavra saudade? Porquê, se até para uma simples bofetada recorremos ao processo analítico e criamos mais de uma dezena de expressões? Quando falamos de saudade, não nos referimos a um acto ou objeto, mas a um sentimento; que revelará dos portugueses a particularidade de tal unificação? Não sei, mas algo foi e algo somos.



Luís Novais


ALMEIDA, Onésimo Teotónio. Filosofia da Saudade, filosofia portuguesa: alguns equívocos. In: Id. A Obsessão da Portugalidade (1ª Edição, 2ª reimpressão). Lisboa: Quetzal, 2018, pp 154-193.


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