sexta-feira, 22 de maio de 2015

ser sem Ser



























Vi-te:
Sorridente disseste:
Sou tu, que escreves.
Pó voltarei:
quando não escrevas.
Outro:
Mim escreverá.
Pó, eterno pó serei.
Nada tu,
eterno Mim.
Nada ele
quando m’escreva.
Todos eu.
Vazios vos dou,
ser? Sou Ser
Vós? ser sois
Tu?
nada.
Sou Aquele que É,
sendo nada, pó.
És o que não é,
sendo tudo, gente.
E ele também.:
quando M'escreva
e tu já não;

quarta-feira, 20 de maio de 2015

DUM SUBOFICIAL E DUM ATAQUE À CIDADANIA




A desvalorização do cidadão que ficou patente, para mais representado naquele arquétipo de pai de família, foi um símbolo e uma consequência: um símbolo de que a cidadania já pouco vale enquanto fonte de legitimidade, uma consequência da aposta política na erosão dessa mesma legitimidade, para entregar o processo decisório a forças obscuras e não sufragados.

A questão do subcomissário de Guimarães já está mais do que explorada e atingiu níveis de voyeurismo típicos de reality show. Volto a ele, não por si, mas pelo que revela. Não para fazer um julgamento público do agente em questão, mas sim das linhas políticas com que nos estamos a cozer (é mesmo assim, cozer com “Z”).

No processo histórico de substituição do escravo pelo servo, do servo pelo súbdito e do súbdito pelo cidadão, há todo um progresso em que a humanidade conquista a sua humanidade. Como diria Charles Tayler, somos tão mais humanos quanto mais detentores de marcos de referência, e tão mais livres quanto capazes de auto definirmos esses marcos, ainda que em função da comunidade em que vivemos ou fomos criados.

Mais do que a utopia de ser completamente livre, o cidadão é fonte de soberania: é dele que emana o poder e é nele que assenta a legalidade para o exercício da violência legítima.

Quando são os agentes dessa violência que se viram contra a fonte da sua legitimidade, alguma reflexão se impõe. Primeiro, porque não penso que este seja uma caso isolado; segundo, porque noutras circunstâncias de violência não física, comprovadamente que não é. 

Diariamente há milhares de intervenções policiais e apenas uma ínfima parte está sujeita ao escrutínio videográfico. Não é preciso entender muito de probabilidade estatística para concluir que teremos anualmente umas boas centenas de abusos. A própria forma como o subcomissário procurou justificar a situação com uma claramente inexistente cuspidela, demonstra qual é o modus operandi em circunstâncias análogas.

Como chegamos a esta situação do protetor agressor? Acredito que tudo isto está fortemente relacionada com a forma como na política se têm vindo a impor políticas.

Ao largo das últimas décadas, o modelo económico e social vigente foi implementado, não com base numa confrontação aberta entre diferentes visões, mas antes recorrendo a um processo de desvalorização comunicacional do adversário; por outras palavras, construindo a célebre narrativa que, de tão sistematicamente narrada, se transforma em imagem mental da verdade. 

Todos somos testemunhas destes processos. Pretende-se impor regras aos professores? Inicia-se uma campanha de ataque à profissão, que a descredibilize. É para privatizar um setor? Diabolizam-se os seus profissionais. Diminuir os serviços públicos? Propagandeiam-se vícios dos funcionários…. e por aí adiante.

A novidade dos últimos tempos é que o alvo já não é um apenas um grupo: Queremos ditar modelos económicos sem apoio popular? Usemos poderes não sufragados para os impor e diabolizemos o cidadão, esse mesmo que tem de se submeter porque terá vivido acima das suas possibilidades.

É com base na construção desta ideia, que o Estado-do-cidadão se transforma em seu inimigo e se torna politicamente exequível dar rédea solta aos organismos de repressão fiscal, policial e administrativa. Não surpreende que, mais cedo ou mais tarde, essa  desvalorização tivesse consequências muito visíveis como esta.

Creio que um dos motivos que fez com que este caso gerasse uma tão grande unanimidade, foi o facto da vítima ser quem foi: "chefe de família", empresário, acompanhado dos filhos e do pai… este homem tem tudo para ser um símbolo do cidadão seguidor dos princípios da ordem, democracia e progresso; numa palavra, ele representa o sustentáculo social da democracia representativa. E foi precisamente essa metáfora que um agente do Estado atacou em vez de defender. 

Naquela demonstração de força (para não dizer de raiva), ficou clara uma inversão dos valores sociais com que se construiu o nosso Estado de Direito Democrático.

A desvalorização do cidadão que ficou patente, para mais representado naquele arquétipo de pai de família, foi um símbolo e uma consequência: um símbolo de que a cidadania já pouco vale enquanto fonte de legitimidade, uma consequência da aposta política na erosão dessa mesma legitimidade, com o objetivo de entregar o processo decisório a forças obscuras e não sufragados.

Perante isto, o sucedido em Guimarães deve indignar-nos mas não  surpreender-nos. 


Luis Novais

domingo, 17 de maio de 2015

QUANDO O HOOLIGAN USA FARDA

Às imagens todos as vimos: o exterior do estádio, um pai, dois filhos e um avô. Enquanto o primeiro dá água ao mais novo e, aparentemente, o sossega, o RobotCop aproxima-se. Ao mesmo tempo, dentro e fora do dito Estádio, alguns adeptos destroem o que lhes aparece à frente. O pai continua a dar água ao mais novo, o avô assiste e o filho mais velho também. Fora desta cena, os vândalos continuam a fazer o que sabem fazer: vandalizam. E o pai a dar água ao filho. O polícia insiste com uma ordem qualquer, que o seu papel é dar ordens a quem dá de beber aos filhos, coisa bem menos arriscada do que pôr os vândalos na ordem. O pai parece alterar-se e argumenta ou insulta, não sabemos. O herói fardado não tem mais que enfiar-lhe um murro direto na cara. O avô revolta-se e leva com mais dois ou três. Seguem-se os guarda-costas do fardado, outros RobotCops, que isto não basta ter arma e cacete, é preciso quem o proteja, principalmente se destarte podem afastar-se da bem mais árdua tarefa de controlar vândalos.


Não gosto de futebol, não tenho clube, nem me emociono por ver 11 tipos a lutar por uma esfera. Para mais, tenho na memória péssimas imagens de selvajaria e hooliganismo ligadas ao desporto dito rei, que até parece ser republica o país mas reinado a bola. Sempre pensei que um estádio era um lugar perigoso e impróprio para levar um filho. Perigoso, ainda que, felizmente, bem policiado… até ver estas imagens, e perceber que afinal o hooligan usa farda, está armado e tem treino pago por todos nós.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Quimera voadora














Hoje
como amanhã fosse. Amanhã é hoje. Ser tudo, idealizado. Idealizando, tudo foste. Do nada fizeste. Em ti, o que não era: foi. Quimera, ou verdade? Ser! Intangível, sonho. Esses são, mais que nada. Ser é que É. Foste! Ficaste. 
Segues, portanto.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

REVISITANDO O PRÉ-MARXISMO

Estátua de Marx e Engels em Berlim
É na sua tradição anterior a 1872 que a esquerda de hoje procura encontrar as ferramentas ideológicas com que vai enfrentar o século XXI. Proudhon e Bakounine ressuscitam, Marx e Engels volteiam no túmulo.

Noticias Aliadas, uma agência noticiosa com tendência de esquerda, decidiu comemorar os seus 50 anos organizando em Lima uma mesa redonda sobre a agenda política dos movimentos sociais na América Latina.

As intervenções couberam ao jornalista internacional Ramiro Escobar, ao economista e ex vice-ministro peruano Hugo Cabieses, ao escritor Raúl Zibechi e à indigenista Melania Canales (devo dizer que sou amigo dos dois primeiros). Tanto os oradores como a assistência, cedo levaram o debate para o tema da identidade da esquerda nos dias de hoje; uma discussão que, além de ser mais geral, é também mais interessante.

Descentralização, organizações horizontais, desinstitucionalização, fragmentação eventualmente federativa dos movimentos, respeito pela diferença cultural e étnica. Todos estes conceitos foram abordados como uma base para a renovação.

Hoje em dia, a força regeneradora estaria numa juventude que se organiza informalmente e que quer uma sociedade mais justa, sem acreditar nas estruturas partidárias. “O meu partido (Partido Socialista do Peru) está afastado, os poucos que aparecem são vaiados sempre que pretendem falar”, disse Cabieses.

Há nisto tudo uma estranheza que não surpreende e que vem da História. O V congresso da Internacional (1872) clarificou as águas do movimento socialista mundial, hegemonizando o centralismo marxista e afastando a corrente anarquista vinda dos tempos de Proudhon e que, à época, era protagonizada por Bakounine. A posterior vitória Bolchevique em 1917 e o princípio geral da Ditadura do Proletariado em que assentaria a novel União Soviética, tiveram o impacto que é conhecido na esquerda do século XX, consolidando a sua caminhada no sentido do centralismo.

Inimigo comum das democracias liberais e do socialismo soviético, o anarquismo seria alvo duma intensa campanha de desinformação que durou quase 100 anos, e que deturpou uma ideologia que nada tem do preconceito genericamente vigente. Como resultado conseguiu-se que uns o rejeitem primariamente pelo que não é, e que outros adiram irracionalmente como se fosse aquilo que nunca foi.

Curiosamente, parece ser nesse baú que a atual esquerda procura as recordações com que se pode renovar.

Voltemos à mesa redonda da Notícias Aliadas.

Depois de afirmar que “sou de esquerda desde os meus 19 anos”, Hugo Cabieses, que agora tem 65, referiu o recente despertar da esquerda latino-americana para as especificidades e direitos dos nativos: “Antes, a selva era apenas um refúgio das guerrilhas e os povos autóctones não eram mais do que carne para canhão das suas guerras”.

Antes de Cabieses, Melania Canales, uma indígena da região de Ayacucho, Peru, fizera um apelo a que se "construa o país a partir das nossas diferenças”, acentuando que “não queremos um Estado centralista, homogéneo e impositivo”.

Organização horizontal, multipolaridade e respeito pelas diferenças étnico-culturais. São modelos que o racionalismo marxista jamais poderia aceitar: o relativismo cabe tanto na liturgia do Vaticano, como na do materialismo dialético.

Concluindo, é na sua tradição anterior a 1872 que a esquerda de hoje procura encontrar as ferramentas ideológicas com que vai enfrentar o século XXI. Proudhon e Bakounine ressuscitam, Marx e Engels volteiam no túmulo.



Luís Novais

sexta-feira, 10 de abril de 2015

DOS CRIMINOSOS QUE MERECEM MORRER E OUTRAS BOUTADES

O doutorado Paulo Pereira de Almeida acaba de escrever uma das suas colunas no Diário de Notícias: “Criminosos que merecem morrer”, um título que é toda uma declaração.

A sua opinião assenta em três linhas de força: há um lóbi de defensores dos direitos de quem cometeu crimes, a justiça em Portugal funciona muito mal, há pessoas que cometem crimes que as tornam merecedoras de morte.

Não se limitando a levantar problemas, o Almeida doutorado oferece soluções: que se faça a famigerada base de dados de condenados por crimes de pedofilia, que se introduza a pena de morte.

Tudo isto com uma investigação “científica” à mistura, como convém a douta personagem. Para tal propósito, presenteia-nos com um “estudo incontroverso (sic) do professor de Economia Nacu Mocan da Universidade do Colorado, Denver, Estados Unidos da América”. Depois desta tão absolutamente rigorosa localização geográfica, deixa-nos de cara à banda com a eficiência da pena capital: “por cada criminoso condenado a uma pena de morte e executado resulta a prática de menos cinco homicídios”. O realce vai para o facto de estas conclusões serem, no seu dizer, “irrefutáveis”.

Obviamente que este é um tema que vai muito além da simples aritmética de salsicheiro, que parece ser a do notável articulista: quantos porcos mortos vale uma centena de apetecíveis salsichas? É de vidas humanas e não porcinas que falamos, e aí valores mais altos se alevantam, que a transformação da vida numa aritmética da eficiência, já sabemos ao que nos levou nessa era que aparentemente terminou em 1945, para já não referir exemplos mais recuados.

Queria, por isso, evitar pôr o assunto nesse mesmo nível, mais rasteiro que rés-do-chão. Querer queria, mas não consigo, porque a desonestidade intelectual é um manancial em si mesma. É que me chamou, e mesmo muito, a atenção, essa fantástica alegoria de que, para conclusões destas, pudesse alguma vez haver incontroverso estudo, como alegadamente seria o caso do mencionado pelo autor das linhas aqui comentadas.

E é que se está mesmo a ver que não, e é que o Almeida doutor nem sequer a ignorância pode dar em testemunho de indulgência, porque para quem quer que seja sofrível leitor de inglês, como acredito que seja, salta controvérsia a olho desarmado no mesmíssimo artigo do Washington Post que refere vagamente sem citar: "To explore the question, they look at executions and homicides, by year and by state or county, trying to tease out the impact of the death penalty on homicides by accounting for other factors, such as unemployment data and per capita income, the probabilities of arrest and conviction, and more".
Com tamanha arquitetura, não haveria algoritmo de cálculo que incontroverso se aguentasse. E como não haveria, não há. E como, ao contrário de certos articulistas que a referem, há imprensa séria que não bota bojarda sem seu contraditório, é no mesmo Washington Post que se pode ler: "We just don't have enough data to say anything," said Justin Wolfers, an economist at the Wharton School of Business who last year co-authored a sweeping critique of several studies, and said they were "flimsy" and appeared in "second-tier journals".

Resta a base de dados, a tal que anunciaria urbi et orbis os condenados por pedofilia. Neste caso ficamos sem saber de outros fundamentos, fora da tal retórica generalista e nada profunda, de que há uns tipos excêntricos que se preocupam com os direitos humanos de todos os seres humanos, tenham ou não cometido crimes. Compreende-se o pudor, depois dos pés pelas mãos e das mãos pelos pés, que ainda há pouco meteu a ministra da justiça, a propósito do mesmo tema, quando ela mesma foi citadora de estudos alegadamente incontroversos que se revelariam, afinal, outras tantas deturpações.

Tudo isto seria apenas triste se, pelo tema, não fosse asqueroso.



Luis Novais

Para o douto artigo, clicar aqui
Para o artigo do Washington Post, clicar aqui

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Crise financeira: a segunda rodada cabe aos mesmos

Com triste ironia, a vitória do Syriza veio até criar condições para que se coloque em marcha um programa que já tem condições políticas para avançar, desde que ao turbilhão foram salvos os especuladores

Menos de 24 horas passadas sobre a vitória do Syriza, já reagem vozes muito fundamentalistas do liberal-desregulamentadorismo, que gritam fathas contra um putativo “calote” grego.

Esquecem-se que qualquer dívida tem dois responsáveis. E lá que andaram por aí especuladores muito aventureiros, andaram... Ou alguém acredita que é de apanha recente tudo o que se diz sobre a ocultação das contas gregas? Era tema mais do que comentado nos corredores de Bruxelas, por muito que agora neguem, tanto políticos como burocratas.

Não é preciso ser sábio, para concluir que dívidas superiores a 100% do PIB não são recuperáveis em menos de 100 anos. Isto sem esquecer juros, que os da portuguesa já rondarão pelo custo do Ministério da Saúde.

Se é para trazer o tema para o domínio da moral, trata-se de saber quem deveria ser poupado: se o povo que votava sem saber ou ganhar, se os que sabendo e ganhando pediam e emprestavam.

Com triste ironia, a vitória do Syriza veio até aplainar o terreno para que se coloque em marcha um programa que já tem condições políticas para avançar, desde que ao turbilhão foram salvos os especuladores, os verdadeios G-DDT, os Grandes Donos Disto Tudo: Movendo a batuta da Sra. Merkel, aliviaram as suas responsabilidades albardando-as nos contribuintes europeus.

O “meia volta e marche” já está anunciado pelo Sr. Draghi: rotativa a trabalhar, imprimir euros e em força. Claro que vem aí desvalorização e desta vez, com renitente aparência, a chanceler vai ser silenciosa apoiante de primeira fila, seus antigos abrenúncios calando.

É estratégia que já Estados Unidos e Inglaterra tinham tomado, e os resultados são visíveis. Agora vamos nós, com bons oito anos de atraso e dando alegrias acrescidas aos tais G-DDT: Dólar a valorizar e esses ricos euros fresquinhos com que os brindamos já notas verdes são.

Falta dizer que uma moeda em queda significa que alguém vai pagar. Quem? Os mesmos que pagaram a primeira rodada, e que agora vão à segunda.



Luís Novais