sábado, 11 de agosto de 2012

Aguarela Neoliberal em Café Risso

O Risso fica na Av. do mesmo nome, em Lima-Peru, e tem um dos melhores cafés expresso que já tomei. O espaço é pequeno e não tem cadeiras ou mesas. Pedimos ao balcão e somos empurrados para a rua pela fila daqueles que esperam pela sua vez. Em frente ao café Risso há uma velha que tem um quiosquezinho ambulante onde vende tartes de maçã e uns bolinhos muito bons que ela própria faz. Nas costas da velha passam mini-autocarros, cada um com seu cobrador à porta que apregoando destinos procura angariar passageiros. Ao lado da velha há um homem enrugado pela poluição que aponta a hora a que passa cada um e diz aos cobradores dos seguintes o tempo que os separa dos anteriores. Ao lado desse homem que aponta há uma mulher com um cartuxo de caramelos que entra nos autocarros e os vende aos passageiros. Na fila do café Risso há pequenos executivos e empregados de comércio remediados.

Assim é.

Enquanto saboreio o meu expresso no passeio, olho para a velha que vende bolos e para o apontador de horários que vende informação e para a mulher do cartuxo que vende caramelos. A história das suas vidas não é difícil de adivinhar. Terão nascido numa comunidad campesina algures nos Andes ou na selva amazónica. As suas terras terão sido ocupadas por um projeto mineiro, ou tiveram as águas com que regavam os seus campos poluídas por esse mesmo projeto, ou qualquer outra coisa do género. Ouviram um desfiar de histórias que eram comprovadoras daquilo que viam na televisão: na capital teriam oportunidades imensas. Vieram. Anos depois, continua a vender bolos na rua, a velha, a apontar horários à frente de escapes negros, o homem, e a saltar de autocarro em autocarro para vender caramelos, a mulher. O cobrador continua a apregoar destinos e o condutor continua a conduzir.

Um dia, alguém vai dizer que em nome do progresso o Estado não pode permitir tamanha informalidade, que até é um risco para a saúde. Algumas notícias vão enfatuar isso mesmo. Meia dúzia de comentadores mostrar-se-ão escandalizados e oito acidentes rodoviários e alimentares vão passar oitenta vezes nas TV’s, nessa alquimia do oito em oitenta. Vozes acreditadas dirão que “é por isso que as coisas estão assim” e que “os políticos não fazem nada”. Por fim, os políticos legislarão, até porque muitos deles são a mesma carne e osso dessas vozes.

Depois disso, o inspetor duma qualquer autoridade vai expulsar a velha da rua, multar o condutor do autocarro e proibir a mulher de vender caramelos. Todos voltarão a mudar de vida que uma vida assim não é vida não é nada. A velha vai morrer de fome, o apontador vai para segurança dum hipermercado e a jovem dos caramelos será caixa nesse mesmo hiper. O cobrador ficará desempregado e os condutores terão de se desfazer dos seus velhos autocarros, indo metade deles trabalhar uniformizados numa grande empresa de transportes. Essa empresa vai pertencer ao mais expedito de entre eles, que esse vai partilhar os ganhos com o político que autoriza as novas concessões e será apoiado por um banco que vai financiar tudo. Pouco depois, todos os utentes estarão a pagar mais para se transportarem, até porque agora já não há concorrência desleal e a companhia concessionária tem o dever de remunerar condignamente o capital do seu investidor.

Quanto à metade desempregada dos condutores, essa vai servir para que a metade empregada aceite trabalhar cada vez mais por cada vez menos. Os cobradores vão dedicar-se a arrombar caixas de multibanco e os seus filhos serão abatidos pela polícia ou metidos na prisão porque andam a roubar cidadãos ou a passar droga nas esquinas. A mulher dos caramelos continuará na caixa do hipermercado e o ex-apontador que ainda é segurança engravidou-a e ambiciona entrar para polícia e ser um desses que abate os filhos dos outros.

Assim será.

Até que um dia, oito acidentes da ex-novel companhia de transportes serão transformados em 80 pela TV e em nome do progresso alguém vai dizer que o Estado não pode permitir tamanha insegurança. Todos os noticiários enfatuarão isso mesmo e meia dúzia de comentadores dirão que “é por isso que as coisas estão assim” e que “os políticos não fazem nada”. Por fim, os políticos legislarão, até porque muitos deles são a mesma carne e o mesmo osso dos comentadores.

Depois disso, o inspetor duma qualquer autoridade vai começar a multar a companhia, que é incapaz de fazer os avultados investimentos que lhe são exigidos pela nova lei. O proprietário suicida-se e todos os bens passam para o financiador, que vai apostar num antigo funcionário dessa empresa, cujo se mostra tão diligente e empreendedor que criará uma transportadora que segue as novas regras e que continuará a velha tradição de partilhar os ganhos com esse mesmo político de quem já aqui falamos…

Por último, claro que todos fizeram como fizeram porque são livres e as coisas foram como foram porque foi o mercado.

Eu? Eu já terminei o meu café que acompanhei com um dos bolinhos daquela velha. Comprei um caramelo à mulher do cartuxo e entrei num mini-autocarro; escolhi aquele que me levasse para mais longe.

Luís Novais

Etiquetas: neoliberalismo, capitalismo, sociedade de consumo





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