quarta-feira, 22 de março de 2017

A CRISE DE POESIA



Falar de crise com números, é esconder a luz com a sombra, a causa com o efeito: Temos uma crise, sim, mas de poesia.

Calhou-me ler a “História do Futuro” do Padre António Vieira (1608-1697), sendo dia mundial da poesia e lendo esta passagem: “O ofício e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas como haviam de ser, ou como era bom que fossem”. Uma declaração que encontra mais sentido no contexto em que o “Imperador da língua portuguesa”, como lhe chamou Pessoa, escreveu esta obra: Espécie de anúncio dum futuro glorioso, que se seguiria às provações que o Portugal de então experimentava.

Isto conduz-nos diretamente para o papel da poesia e da literatura, numa sociedade que vive um positivismo em crise, que navega uma ciência que não pode dar todas as respostas humanas, que ora numa universidade que herdou os erros dos templos sagrados, sem conseguir dar o absoluto que estes ofereciam.

Vieira fala-nos da importância da profecia, o nome escatológico para mito, ou, numa linguagem mais laboratorial, para utopia. Entre vários exemplos, contempla o de Alexandre Magno, que construiu um império graças à força que lhe deu uma promessa, que o fez partir “vitorioso para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual sujeitou e uniu todo ao seu império”. Porém, diz, “o que mais admira nas conquistas e vitórias de Alexandre, é a desigualdade de meios com que entrou em tão imensa empresa (…), saiu da Macedónia com menos de quarenta mil homens, bastimentos para trinta dias, e com setenta talentos para estipêndios”. Onde estava então a força? Na profecia, a mesma que dava alento aos seus para avançar e aos conquistados para recuar. “Tanta parte teve a profecia nas ações deste grande capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve a Filipe ser Alexandre, deve (ao profeta) Daniel o ser Magno!”

O assumir do papel psicológico do mito, é depois canalizado para a própria história de Portugal: O prenúncio que o ermitão de Ourique terá feito a Afonso Henriques nas vésperas da batalha. Estaríamos perante uma espécie de mito fundador da nacionalidade, assegurado que já estava ao príncipe ser vontade divina que este fosse rei e Portugal reino. É graças a tal graça, que Afonso “rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a portuguesa”.

Se “isto obraram as profecias daquela noite na guerra”, mais ainda “mostraram os seus poderes na conquista”, e aqui António Vieira entra diretamente nos descobrimentos e no peso que o mito teve na coragem com que os navegantes enfrentaram esse mar que Pessoa viria a dizer português: “Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante”. E porquê? Porque “sabiam que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei que os escolhera para argonautas apostólicos de seu evangelho”.

Estas palavras escritas por volta de 1650 fazem refletir, não só sobre o nosso tempo, mas sobre o papel da utopia, transfiguração moderna do conceito de que Vieira fala. Escreveu numa época de crise nacional, estava a restauração recém-iniciada e em curso uma série de batalhas com Espanha, que só culminariam com o Tratado de Lisboa em 1668. Ante a ameaça que pendia sobre o reino, fala-nos da importância da profecia, como ponto partida para uma outra e nova que ele mesmo adiantaria algumas páginas mais adiante: A do grande futuro que estava fadado a Portugal, como cabeça dum quinto império que converteria o mundo ao cristianismo.

O objetivo de António Vieira não só é claro, como ele próprio faz questão de que seja claro aos hermeneutas: Há que sonhar, para vencer as agruras do presente, sublimando-as na promessa dum futuro grandioso, numa palavra, uma utopia.

Em seguintes períodos de crise nacional, outros lhe seguiram as pisadas. Nem é preciso fazer referência à situação em que se encontrava a Europa, o mundo e Portugal em 1934, para estabelecer uma ligação direta à “Mensagem” de Fernando Pessoa. “A Europa jaz posta nos cotovelos”, diz, mas “Fita com olhar esfíngico e fatal,/O Ocidente, futuro do passado”, e “O rosto com que fita é Portugal”. Uma Europa que 16 anos antes se digladiara no confronto mais mortal de que havia memória, que enfrentava ainda os efeitos da grande recessão, e um Portugal exausto que, nove anos antes do nascimento de Pessoa, já Oliveira Martins anunciara morto de exaustão desde 1580 e uma espécie de morto vivo depois da restauração. O Pessoa de “Mensagem” vive numa Europa sob dois ecos, os da Primeira Guerra, e os que já anunciavam a Segunda. Viveu a primeira infância num país abalado pela bancarrota de 1892-1902, espécie de bater no fundo dum século em que as finanças públicas rebentaram por seis vezes. Seguiu-se-lhe uma república que não foi capaz de sobreviver às suas próprias contradições e promessas. A obra foi escrita um ano depois da constituição de 1933, que marca uma viragem política e consolidaria essa ditadura que só encontrará fim em 1974.

E o que é “Mensagem” se não uma “História do Futuro” do século XX? Um assumir dos heróis, transfigurados em castelos, dos mártires da pátria, nas quinas. As agruras do presente são promessa de grandes futuros, “Os Deuses vendem quanto dão/ Compra-se a glória com desgraça”. Que resta aos mortais, que não aceitar e enfrentar tamanha dureza, se esta é forja de glórias? Já o mesmo pensamento na antiguidade, em Homero, quando, perto de arremeter contra as muralhas de Troia, Sárpedão diz a Glauco:
           
            “Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos
viver para sempre isentos de velhice e imortais,
nem eu próprio combateria entre os dianteiros
nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora de homens.
Mas agora, dado que presidem os incontáveis destinos
da morte de que nenhum homem pode fugir ou escapar,
avancemos, quer outorguemos glória a outro, ou ele a nós.

Ideia muito clara: O sublime é motor da humanidade, quer seja uma fé, uma ideologia, uma lenda, uma profecia. Por ser grande, a utopia é coletiva, e porque coletiva sempre cumpriu a função de unificar cada homem ao Homem, à espécie, à humanidade. E essa unificação é a que permite fundir o olhar individual no global, é daqui que nascem os grupos, as nações, e com elas a caminhada e um destino que, apesar de a posteriori, tem origem numa certeza apriorística.

O dia mundial da poesia é, talvez, o momento para dizer que o mal de que padecem Ocidente, Europa e Portugal, é o desperdício da função do poeta. Tem caminho mas não destino, quem troca o cifrão pela palavra, a estrofe pelo algoritmo, a técnica pela paixão, o sonho pela prática, a ambição pelo deficite, Ulisses pelo eurocrata. Falar de crise com números, é esconder a luz com a sombra, a causa com o efeito: Temos uma crise, sim, mas de poesia.




Luís Novais

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