Falar de crise com números, é esconder a luz com a sombra, a causa com o
efeito: Temos uma crise, sim, mas de poesia.
Calhou-me ler a “História do Futuro”
do Padre António Vieira (1608-1697), sendo dia mundial da poesia e lendo esta passagem: “O ofício
e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas
como haviam de ser, ou como era bom que fossem”. Uma declaração que encontra
mais sentido no contexto em que o “Imperador da língua portuguesa”, como lhe chamou
Pessoa, escreveu esta obra: Espécie de anúncio dum futuro glorioso, que se
seguiria às provações que o Portugal de então experimentava.
Isto conduz-nos diretamente para o
papel da poesia e da literatura, numa sociedade que vive um positivismo em
crise, que navega uma ciência que não pode dar todas as respostas humanas, que
ora numa universidade que herdou os erros dos templos sagrados, sem conseguir
dar o absoluto que estes ofereciam.
Vieira fala-nos da importância da
profecia, o nome escatológico para mito, ou, numa linguagem mais laboratorial,
para utopia. Entre vários exemplos, contempla o de Alexandre Magno, que
construiu um império graças à força que lhe deu uma promessa, que o fez partir “vitorioso
para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual sujeitou e uniu todo
ao seu império”. Porém, diz, “o que mais admira nas conquistas e vitórias de
Alexandre, é a desigualdade de meios com que entrou em tão imensa empresa (…),
saiu da Macedónia com menos de quarenta mil homens, bastimentos para trinta
dias, e com setenta talentos para estipêndios”. Onde estava então a força? Na profecia,
a mesma que dava alento aos seus para avançar e aos conquistados para recuar. “Tanta
parte teve a profecia nas ações deste grande capitão e no império deste grande
monarca, o qual, se deve a Filipe ser Alexandre, deve (ao profeta) Daniel o ser
Magno!”
O assumir do papel psicológico do
mito, é depois canalizado para a própria história de Portugal: O prenúncio que
o ermitão de Ourique terá feito a Afonso Henriques nas vésperas da batalha. Estaríamos
perante uma espécie de mito fundador da nacionalidade, assegurado que já estava
ao príncipe ser vontade divina que este fosse rei e Portugal reino. É graças a
tal graça, que Afonso “rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa,
rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a
pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a
portuguesa”.
Se “isto obraram as profecias
daquela noite na guerra”, mais ainda “mostraram os seus poderes na conquista”,
e aqui António Vieira entra diretamente nos descobrimentos e no peso que o mito
teve na coragem com que os navegantes enfrentaram esse mar que Pessoa viria a
dizer português: “Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios,
que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem
parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante”. E porquê? Porque “sabiam
que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei que os escolhera para argonautas
apostólicos de seu evangelho”.
Estas palavras escritas por volta
de 1650 fazem refletir, não só sobre o nosso tempo, mas sobre o papel da
utopia, transfiguração moderna do conceito de que Vieira fala. Escreveu numa
época de crise nacional, estava a restauração recém-iniciada e em curso uma
série de batalhas com Espanha, que só culminariam com o Tratado de Lisboa em
1668. Ante a ameaça que pendia sobre o reino, fala-nos da importância da
profecia, como ponto partida para uma outra e nova que ele mesmo adiantaria algumas
páginas mais adiante: A do grande futuro que estava fadado a Portugal, como
cabeça dum quinto império que converteria o mundo ao cristianismo.
O objetivo de António Vieira não só
é claro, como ele próprio faz questão de que seja claro aos hermeneutas: Há que
sonhar, para vencer as agruras do presente, sublimando-as na promessa dum futuro
grandioso, numa palavra, uma utopia.
Em seguintes períodos de crise
nacional, outros lhe seguiram as pisadas. Nem é preciso fazer referência à
situação em que se encontrava a Europa, o mundo e Portugal em 1934, para estabelecer
uma ligação direta à “Mensagem” de Fernando Pessoa. “A Europa jaz posta nos
cotovelos”, diz, mas “Fita com olhar esfíngico e fatal,/O Ocidente, futuro do
passado”, e “O rosto com que fita é Portugal”. Uma Europa que 16 anos antes se digladiara
no confronto mais mortal de que havia memória, que enfrentava ainda os efeitos
da grande recessão, e um Portugal exausto que, nove anos antes do nascimento de
Pessoa, já Oliveira Martins anunciara morto de exaustão desde 1580 e uma espécie
de morto vivo depois da restauração. O Pessoa de “Mensagem” vive numa Europa
sob dois ecos, os da Primeira Guerra, e os que já anunciavam a Segunda. Viveu a
primeira infância num país abalado pela bancarrota de 1892-1902, espécie de
bater no fundo dum século em que as finanças públicas rebentaram por seis
vezes. Seguiu-se-lhe uma república que não foi capaz de sobreviver às suas
próprias contradições e promessas. A obra foi escrita um ano depois da
constituição de 1933, que marca uma viragem política e consolidaria essa
ditadura que só encontrará fim em 1974.
E o que é “Mensagem” se não uma “História
do Futuro” do século XX? Um assumir dos heróis, transfigurados em castelos, dos
mártires da pátria, nas quinas. As agruras do presente são promessa de grandes
futuros, “Os Deuses vendem quanto dão/ Compra-se a glória com desgraça”. Que
resta aos mortais, que não aceitar e enfrentar tamanha dureza, se esta é forja
de glórias? Já o mesmo pensamento na antiguidade, em Homero, quando, perto de
arremeter contra as muralhas de Troia, Sárpedão diz a Glauco:
“Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos
viver para sempre isentos de velhice e imortais,
nem eu próprio combateria entre os dianteiros
nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora
de homens.
Mas agora, dado que presidem os incontáveis
destinos
da morte de que nenhum homem pode fugir ou
escapar,
avancemos, quer outorguemos glória a outro, ou ele
a nós.”
Ideia muito clara: O sublime é motor
da humanidade, quer seja uma fé, uma ideologia, uma lenda, uma profecia. Por
ser grande, a utopia é coletiva, e porque coletiva sempre cumpriu a função de
unificar cada homem ao Homem, à espécie, à humanidade. E essa unificação é a que
permite fundir o olhar individual no global, é daqui que nascem os grupos, as
nações, e com elas a caminhada e um destino que, apesar de a posteriori, tem origem numa certeza apriorística.
O dia mundial da poesia é, talvez,
o momento para dizer que o mal de que padecem Ocidente, Europa e Portugal, é o desperdício
da função do poeta. Tem caminho mas não destino, quem troca o cifrão pela
palavra, a estrofe pelo algoritmo, a técnica pela paixão, o sonho pela prática,
a ambição pelo deficite, Ulisses pelo eurocrata. Falar de crise com números, é
esconder a luz com a sombra, a causa com o efeito: Temos uma crise, sim, mas de
poesia.
Luís Novais
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