terça-feira, 17 de novembro de 2015

PORQUÊ CHORAMOS MAIS PARIS?




França é geográfica e culturalmente uma espécie de mínimo denominador comum do ocidente. Há uma ideia, muitas vezes não confirmada pela História, de que as convicções mais profundas da nossa contemporaneidade tiveram aí o seu berço: liberdade para pensar, exprimir e fazer; democracia; fraternidade. Será por isso que um golpe sobre Paris é sentido como um ataque ao nosso modelo civilizacional.

Recentemente, uma amiga questionava-se sobre os motivos que nos levaram praticamente a ignorar o ataque ao avião russo no Sinai, que provocou 225 mortos, ao mesmo tempo que nos comocionávamos com as 130 vítimas de França. “Porque não puseram a bandeira russa nos seus perfis do Facebook?” “Porque quase não se pronunciaram?”

Essa mesma questão apareceu indiretamente nas redes sociais, não sobre este caso particular, mas sobre a desproporcionalidade do choque que provocou Paris quando comparado com uma menor atenção à grande lista de ataques ocorridos noutros locais. 

Julgo que há quatro razões para isso.

A primeira é a forma como tudo foi feito. Numa cultura de imagens em tempo real, tem um impacto psicológico muito maior que um grupo de terroristas irrompa teatro adentro, com a surpreendente frieza de matar um-por-um quem aí esteja. Os relatos de terror dos sobreviventes, as mensagens desesperadas que iam colocando nas redes sociais enquanto se escondiam, as imagens literalmente sangrentas. Tudo isto contribui para um horror muito maior, e também para um incomparável sentimento de insegurança: afinal, não estamos constantemente dentro dum avião e até podemos optar por não fazê-lo, sem que isso altere insuportavelmente o nosso modo de vida. O que não podemos é deixar de frequentar a rua.

A segunda razão terá sido o tempo que passou entre a queda do avião e o reconhecimento oficial de que não foi um acidente. A informação foi sendo libertada progressivamente e sempre com uma substancial dose de dúvida. Só quinze dias depois o governo russo reconheceu oficialmente o atentado. Nessa altura, já estávamos numa fase pós-comoção.

Creio que estes dois fatores foram importantes, mas não são os principais determinantes da maior e mais generalizada reação aos ataques de Paris. O ser humano tem mecanismos de defesa instintiva que são ancestrais e que, por um lado, o fazem repudiar de forma animal aquilo que lhe está distante e, pelo outro, solidarizar-se com o que lhe está próximo. Era assim que os nossos antepassados reagiam às ameaças e protegiam o seu espaço vital. São instintos básicos que a razão e a moral humanista não conseguiram debelar totalmente. Esta bestialidade humana está na origem de alguns fenómenos, uns malignos e outros neutros, como são racismo, nacionalismo, bairrismo clubismo etc. Somos um coquetail bipolar entre besta e humano que nos impulsiona a sentir de forma mais profunda o sofrimento daqueles que estão perto.

Acontece que França é geográfica e culturalmente uma espécie de mínimo denominador comum do ocidente. Há uma ideia, muitas vezes não confirmada pela História, de que as convicções mais profundas da nossa contemporaneidade tiveram aí o seu berço: liberdade para pensar, exprimir e fazer; democracia e fraternidade. Será por isso que um golpe sobre Paris é sentido como um ataque ao nosso modelo civilizacional. 

Em simultâneo, a Rússia é cada vez mais vista como “o outro”. A invasão da Crimeia, a crise ucraniana, o diferendo de posições sobre a Síria, os alertas dos países bálticos e da Polónia… com ou sem razão, de dia-para-dia o ocidental vê Moscovo mais distante, e este afastamento provoca anomia.  

“Só se se formos capazes de pensar como humanidade conseguiremos vencer”, respondeu-me a minha amiga, depois de ouvir estas explicações (que não justificações). Tem razão; a fera ancestral é o maior inimigo do ser humano que fomos construindo, diga-se que por vezes a ferro e fogo.


Luís Novais

Foto: Stux

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