Na cultura ocidental, a primeira e indiscutível das verdades resume-se na ideia de que a verdade É. (...) Só conseguimos entender em profundidade a vitória de Trump se a inserirmos num quadro antropológico de descrença na verdade.
As obras de António Damásio revelaram-nos uma espécie, a humana, que é a
única com consciência de si e na qual cada individuo é capaz de
construir um “eu” baseado na acumulação duma “memória autobiográfica”. Os
argumentos apresentados pelo neurocientista português são fortes e as experiências
que revela muito convincentes, mesmo para quem não seja especialista na matéria.
A consequência imediata desta consciência do “eu”, é uma automática
consciência do “outro”, quer nos refiramos ao outro-pessoa, ou ao outro-cosmos.
Se mais nenhuma espécie desenvolveu, pelo menos de forma tão radical, uma
separação entre “mim” e “ti”, então estamos perante uma das bases fundamentais da
condição humana.
Temos assim que somos excêntricos, uma excentricidade tão mais grave quanto
vivemos numa natureza que tem a eficiência como prioridade e que, por isso, procura
desenvolver soluções apenas para aqueles problemas que sejam comuns a uma parte substancial
da sua criação. Ou seja, uma má notícia para a humanidade: Somos dotados
da característica única de saber que somos, mas não estamos dotados de
capacidade natural para lidar com ela.
Todos os problemas que partilhamos com outras espécies têm uma solução
natural e, até, inconsciente: A sensação de asfixia para que nos obriguemos a
respirar, a fome para que nos alimentemos, o desejo sexual para que nos
reproduzamos…. e uma infinidade de outras questões, em que se inserem coisas
tão distintas com o mecanismo de cicatrização e a homeostasia em geral.
Agora, para a desagregação dos cosmos ninguém nos preparou e é por isso
que, incapazes de contar com a solução natural, temos de inventar a artificial:
Fazemos cultura.
Nesta perspetiva, acredito que a cultura é a artificialidade que a espécie
humana desenvolve para resolver este problema único na natureza que é a nossa visão
fragmentada. Em boa verdade, temos uma fronteira, somos os únicos que a têm e precisamos de encontrar uma solução para a realidade de que a temos.
Não será por acaso que há modelos mitológicos que são interculturais. Adão
e Eva cobriram-se de vergonha quando comeram o fruto do conhecimento e, supõe-se,
ganharam consciência de si; Prometeu foi agrilhoado quando ofereceu à
humanidade essa eterna metáfora do conhecimento e da consciência que é a luz;
em tristes trópicos Levi Strauss mostrou como são interculturais as maldições
sobre espécies animais que têm algumas características comuns.
Na Grécia antiga, esta questão foi resolvida por Platão com a teoria da
dualidade: Ao mundo da matéria sobrepõe-se o das ideias. Naquele somos individuais
e imperfeitos, neste somos unos na perfeição. É com base nesta cosmovisão que
se desenvolve um cabaz de respostas para o problema, e não há civilização que
possa crescer sem encontrar o seu. Para nós, ocidentais, há tradicionalmente dois mundos, um
aparente, outro verdadeiro. Toda a nossa filosofia é uma constante
perspetivação deste modelo, um modelo que nos leva a acreditar na
universalidade ou, numa palavra, na verdade.
Se acreditar na verdade é uma consequência da nossa filogénese, é simultaneamente uma das nossas forças e uma das nossas grandes debilidades.
Acreditar na Verdade cria sociedades imperialistas e fundamentalistas, porque,
sendo a verdade Verdade, não admite alternativa, simplesmente É. Temos então um
gerador de desequilíbrios na nossa genética cultural: Quem tenha a verdade
consigo tem direito a tudo, quem a não tenha, nada tem. Não será por acaso que, tradicionalmente, os jogos de poder no mundo ocidental se desenvolveram em torno da definição dos grupos que detêm a liturgia que lhe dá acesso.
Nas minhas viagens por África ou pela Amazónia, contactei muitas vezes com
culturas não ocidentalizadas, ou superficialmente ocidentalizadas, para as
quais a questão da verdade não existe. São comunidades que se regem pelo
princípio do equilíbrio: quando lidam com a conflitualidade, não procuram saber
de que lado está a razão, mas antes encontrar a via mais equilibrada para que
nenhuma das partes fique despojada.
Um exemplo foi o caso de Malan, que conheci numa comunidade tribal da Guiné
Bissau. Tinha um conflito com o vizinho, porque este usufruía dum terreno que
foi dos seus avós. Enquanto Malan dizia que tinha sido um empréstimo, o vizinho afirmava que fora uma dádiva e, inclusive, argumentava ter sido o seu avô
quem plantou os cajueiros e não era justo que Malan ficasse com eles.
O diferendo estava a ser resolvido pelo régulo, que para isso dialogava à
vez com um representante de cada um, pois não podiam ser os próprios a participar.
O conflito durava há alguns anos mas, pelo que me apercebi, aproximava-se duma
decisão final: Malan ficaria com a posse do terreno, o vizinho com os cajueiros.
Longe de tentar alcançar uma “verdade”, o régulo procurava um equilíbrio e
fazia-o junto com os representantes de cada um, sendo interdita a intervenção
direta destes, já que negociar sem paixão é uma condição essencial para chegar a
um ponto comum.
Imaginemos este mesmo caso num tribunal europeu. A preocupação do juiz
seria descobrir de que lado estava a verdade, ou seja, ambas as partes teriam de
mostrar provas, documentais ou testemunhais, de que o terreno ou teria sido
oferecido, ou teria sido emprestado, chegando-se depois a uma sentença que ainda
se complicaria mais se, pelo meio, se colocassem questões de usocapião. Certo é
que a verdade teria de estar de um ou do outro lado e a decisão final não
teria em conta o equilíbrio, mas que tudo fosse entregue àquele que estivesse
do lado certo, ficando uma das partes absolutamente despojada. Os crimes de
sangue que no nosso mundo rural se sucedem a este tipo de decisões judiciais
são uma consequência desta visão, originadora de que uma das partes sinta ter perdido tudo. Isto mesmo explica também muitos dos crimes cometidos durante a
História do desenvolvimento e expansão do ocidente.
Na cultura ocidental, a primeira e indiscutível das verdades resume-se então na
ideia de que a verdade É, e essa ideia advém da crença nos dois mundos,
espírito e matéria, desenvolvida para lidar com o problema da dupla
consciência, eu e o outro, com que a espécie humana fragmentou a sua visão do
cosmos. Na nossa História fomos encontrando diferentes vias de chegar até ela,
fosse com a recordação socrática, a metafísica aristotélica, o cristianismo ou
a ciência.
Quando a evolução da ideia nos conduz a desenvolver um mecanismo que nos leva a concluir pela não existência da dualidade, apreendemos que a verdade não
é, ou seja, foi a crença na verdade que nos conduziu a dela descrer. Esta mesma descrença tinha de nos levar a uma crise civilizacional que, essa sim, está na
base da atual crise de valores que, por seu lado, é fonte da económica.
Subitamente, tudo aquilo em que acreditávamos é abalado nas suas bases, e a
humanidade ocidental caminha desorientada ao sabor de modelos que já não estão
sustentados numa profunda convicção.
Esse vaguear desesperado tem levado a caminhos que os racionalistas
consideramos muito perigosos: Um é o culto da mentira, outro o
anti-secularismo.
Sobre o primeiro, a recente vitória de Daniel Trump é simbólica. Para incredulidade
dos que continuamos a seguir um modelo clássico de racionalismo ocidental,
resultou desconcertante que, quanto mais o candidato mentia, quanto mais as
suas mentiras eram desmascaradas, mais popularidade conseguia, ao ponto de
alcançar um resultado que pouquíssimos teríamos imaginado possível.
Só conseguimos entender em profundidade a vitória de Trump se a inserirmos
num quadro antropológico de descrença na verdade. Um quadro para o
qual também contribuíram aqueles que, hipoteticamente, deveriam defendê-la, os
sacerdotes da modernidade: os académicos, os cientistas. Esta comunidade
contribuiu muito para a descrença atual, quando também ela passou a ser parte
dum mundo em crise de valores e se deixou corromper pelos cantos de sereia. Em
consequência disso, sempre que sabemos das conclusões dum estudo, por muito académico e científico que seja, a atitude
pós-moderna típica é perguntar a quem interessam essas conclusões e quem
financiou esse trabalho. Ou seja, a palavra, a narrativa, substituíram a ideia.
Uma sociedade que já não acredita que seja verdade que a verdade seja, não tem
qualquer dificuldade em considerar que o mais verdadeiro de entre todos é
aquele que mente descaradamente, porque o outro a-fortiori também, duma mentira tanto maior quanto mais difícil de detetar.
Trump contra Hillary também passa por aqui.
A outra atitude é o anti-secularismo, uma nova religiosidade vivida de
forma cada vez mais intensa e fundamental. Estes querem continuar a acreditar,
mas já descreem da razão que a negou. Incapazes de dialogar com a
racionalidade, refugiam-se em movimentos que os transferem para conceptualismos
com as quais, suprema vingança, somos os racionalistas que não conseguimos
argumentar.
Luís Novais
Foto: Geralt
Excelente texto. Deixa-me perplexo.
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