Não podemos
compreender a civilização ocidental sem a transcendência de Platão e, portanto,
sem uma profunda crença na verdade (…). Sem
alegoria da caverna, podemos ser tudo menos o que somos.
Numa
reportagem da SIC, afirmava-se o seguinte sobre a eleição de Jair Bolsonaro:
Defensor da ditadura militar e da
tortura, o novo presidente do Brasil assumiu durante toda a campanha um
discurso de violência e ódio. Jair Bolsonaro está há 27 anos na política, mas
conseguiu fazer passar a ideia de que não faz parte do sistema.
Não costumo contradizer os geralmente nada argumentados
comentários que as turbas colocam nas redes sociais, mas desta vez não pude evitar: encontrei um
grande amigo, que dizia ser tudo um “chorrilho de mentiras”. Tive de lhe
perguntar ponto-por-ponto se cada uma daquelas referências era falsa... Que não,
mas que eram antigas e Bolsonaro já se tinha demarcado e até pedido desculpas.
Devo sublinhar que esta resposta é um grande avanço.
Normalmente, os adeptos deste adepto da ditadura costumam negar, fazendo juras pela falsidade e edição de todas as declarações mais comprometedoras do seu novo ídolo. Neste contexto, chega a
ser positivo reconhecer uma veracidade, mesmo ressalvada por um pretenso pedido de
desculpas que não encontrei em lugar algum, mas cuja possível existência não nego.
Esta resposta levou-me a dizer ao meu bom mas crente amigo, que não basta desdizer-se o já dito se, ainda há pouco, Bolsonaro evocou o sinistro torturador Ustra, em plena Câmara dos deputados. Obviamente, não estamos a falar de pensamentos longínquos e quaisquer desditos em cima da
campanha, mais não são do que má recauchutagem para não levar a sério. Lá que o meu bom amigo, não sendo jornalista, se deixe enganar, é uma coisa,
que acuse uma equipa de jornalistas de proferirem um “chorrilho de mentiras”
quando só dizem verdades, é outra muito diferente.
Por fim, aceitou que o importante é não ter sido isso que
o povo percebeu e lá me calhou, em paciente pedagogia, explicar-lhe qual é o papel dum
jornalista. Tudo bem.
Esta atitude de acusação ao jornalismo quando diz
verdades incómodas, foi algo em Portugal iniciado por Cavaco Silva e,
internacionalmente, teve vários adeptos, atingindo o apogeu com Donald Trump, esse grande difusor da mesma ideia
com que o meu amigo argumentava: “Verdade é o que o povo percebe como
verdade”.
O tema está bem estudado, até já tem o seu lugar na
datação histórica como pós-verdade, que não é, afinal, mais do que a uma pós-modernidade,
já embrionária no século XIX, bastando ler alguma da imprensa da época, ou as
criticas mordazes dum Balzac ou dum Eça. No início do século XX, já Goebbels, dum lado,
ou Walter Lippmann, do outro, tinham percebido como era isso de transformar a
mentira muito repetida em verdade muito assimilada.
Aqui não me interessa entrar nessa teorização, que aliás Chomsky faz com o rigor dos mestres. Quero apenas sublinhar uma constatação:
normalmente, esses mesmos que acusam a imprensa séria de produzir falsas
notícias (ou, mais portuguesmente, “chorrilhos de mentiras), fazem-se também grandes defensores
da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, proferem fatahs contra quem quer que ainda procure lançar bóias a um rigor, cada vez mais afundado neste pântano de mentiras, rapidamente transformadas
em verdades apenas porque “é assim que o povo as vê”.
Não podemos compreender a civilização ocidental sem a
transcendência de Platão e, portanto, sem uma profunda crença na verdade. Tenho que nascemos
civilizacionalmente em “Fedón”, onde Sócrates está feliz porque vai
regressar a esse mundo, o das ideias, o da verdade. Sem alegoria da caverna,
podemos ser tudo menos o que somos.
E lá tive de dizer ao meu amigo que ele, tão acusador
de lhe andarem a destruir o seu rico Ocidente, não faz mais do que lhe espetar mais um prego no caixão, quando acusa de “chorrilho de mentiras”, o que termina por reconhecer apenas como algo diferente daquilo que “o povo entendeu”. Com defensores assim,
pobre civilização ocidental!
Luís Novais
Foto: Werner22Brigitte
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