Esta ausência de ideal Europeu na nossa literatura
actual e, até, a existência duma ideia, se não antieuropeísta a-europeísta, é
algo que nos deveria fazer reflectir. É que a literatura, por emocional, é o
texto por excelência da identidade.
Muito se dizia que a participação do reino Unido nas últimas eleições para o parlamento europeu seria
uma oportunidade para demonstrar a existência real dum sentimento unionista-europeu
nos seus cidadãos. Ir a votos neste sufrágio era um claro paradoxo para os que pretendem
sair, mas o resultado foi precisamente o contrário e, se havia alguma dúvida de
que os súbditos de Isabel II querem mesmo abandonar o barco, essa
dúvida acaba de dissipar-se com o resultados. Paradoxalmente, os claros
vencedores foram os geneticamente anti-união.
O partido eurocético de
Nigel Farage foi criado neste mesmo ano de 2019 e teve a proeza de sair
vencedor com 31,7% dos votos, a uma grande distância do segundo classificado, o
união-europeísta partido Liberal Democrata com apenas 19,6%. Os tradicionais
Trabalhista e Conservador sofreram a humilhação de conseguirem apenas 13,65% e
8,8% dos votos. Na própria Escócia, Farage obteve 14,8%, ou seja, mais do que os
trabalhistas a nível nacional.
Estes resultados
acontecem uns longos três anos após o célebre referendo. Foi um triénio caraterizado
por uma intensa propaganda anti-saída, durante o qual se argumentou que os
eleitores tinham sido enganados e não tiveram a informação correta. Muitos
diziam que, havendo novo referendo, o “sim” seria o claro vencedor. Se neste
período não conseguiram “esclarecer” e ter a respetiva desforra, então é melhor
começarmo-nos a convencer de estarmos realmente perante a vontade soberana dos
cidadãos. Pode não agradar, mas a Democracia não está feita ao sabor de nenhuma
corrente de pensamento e não é boa apenas quando os resultados são os
pretendidos por alguns.
O BREXIT E A DIPLOMACIA PORTUGUESA
Este é um resultado que
pode abalar Portugal no curto prazo, mas pode também ser uma oportunidade no
médio. Há séculos que o nosso país tem uma diplomacia estruturalmente
caracterizada pela procura de apoios alternativos que o desafoguem das forças centrípetas
de proximidade, essas que de tão próximas o poderiam absorver.
Esta estratégia foi
claramente seguida durante muitos séculos, tanto que ficou como uma marca das
nossas relações exteriores. Foi possível graças à posição geográfica
periférica, que permitiu uma aproximação aos centros políticos mais poderosos,
mas numa distância física que não anulava a autonomia porque estes representavam para nós a mesma oportunidade que nós para eles: a possibilidade de
diminuir a força aglutinadora dos que estavam no meio. O célebre universalismo
português tem essa raiz: Curiosamente tornamo-nos universais para nos mantermos
regionais, procuramos os grandes mas longínquos para evitar os medianos mas próximos
(e que em alguns períodos foram até bastante poderosos).
A possibilidade desta
estratégia está intrinsecamente relacionada com a posição periférica que sempre
tivemos frente às potências centrípetas da história e esta constatação comprova-se
pelo facto de ser, até, muito anterior à nacionalidade e, portanto, ter já um
profundo cariz provincial antes de nacional. Temos pelo menos três testemunhos documentados
desde o distante século IV que nos mostram a existência deste modelo.
O primeiro é o roteiro
epistolar de Egéria, uma aristocrata cristã-romanizada da Galécia, província
que tinha sede em Bracara Augusta de onde provavelmente provinha, e uma pessoa claramente
influente no seio da Igreja local do século IV. Nesse tempo florescia em Ávila a heresia
cristã de Prisciliano, fortalecendo-se e ameaçando tornar-se num polo
aglutinador de poder dentro da Península Ibérica, a ponto de poder vir a
originar uma Igreja local e, com ela, a concentração dum novo poder político asfixiantemente
próximo. Egéria viajou à Terra Santa e enviou não só pitorescos relatos dos
locais que visitava, mas também uma pormenorizada descrição do rito cristão
local, o que só pode interpretar-se como a busca dum cristianismo universal
capaz de fazer frente às locais tentativas priscilianistas.
Já no século V, Paulo
Orósio, sentindo-se ameaçado pela invasão dos bárbaros suevos, foge da cidade de Brácara Augusta onde vivia como presbítero,
dirigindo-se à distante Hipona e tornando-se discípulo de ninguém menos do que
Santo Agostinho, a quem representará em várias ocasiões e em diversos debates
que o fizeram viajar por todo o Mediterrâneo. Orósio deixou-nos uma vasta obra,
uma das quais redigidas após a morte de Agostinho e afirmando ser escrita a seu
pedido[i].
Uma vez mais encontramos um universalismo que procura nos grandes centros a
libertação relativamente às forças mais próximas.
De igual maneira Idácio,
bispo de Chaves, nos deixou no século V a sua famosa Crónica[ii],
uma apologia anti suevos, os mesmo que então se instalavam com um reino próprio
no espaço antes definido como Galécia e que incluía o seu bispado. Frente à
força dos novos invasores, Idácio usará todos os instrumentos ao seu alcance
para manter a autonomia do seu território, a tal ponto que o historiador César
Colodrón chegou a vê-lo como líder duma pequena república independente[iii].
Será perseguido pelos novos senhores, chegando a ser preso, e desenvolveu uma intensa actividade diplomática
junto das forças distantes do decadente Império romano, procurando apoios para
a sua causa. Nesta luta contra os poderes próximos, também Idácio será um perseverante
combatente da heresia priscilianista.
Esta mesma estratégia de
procurar os centros universais de poder para se libertar dos regionais, não seria
outra se não a do próprio D Afonso Henriques, no seu casamento com D Mafalda,
vinda da poderosa casa de Sabóia, e nas
suas aproximações diplomáticas a Roma, que acabaria por reconhecê-lo e servia de contraponto ao poder
próximo do primo Afonso VII de Leão. Já o pai fizera o mesmo, aproveitando-se
da sua origem borgonhesa e da ligação ao tio, abade da imponente ordem de
Cluny. Morto o conde, D Teresa inverte esta estratégia, aliando-se à aristocracia
galega. Claro que a força centrípeta duma força tão próxima era insuportavelmente
avassaladora, sendo por isso que os infanções locais não a suportaram e
deixaram a condessa sem condado o mais depressa que puderam, pondo o próprio
filho frente-a-frente com a mãe em 1128.
Em cada crise de
sobrevivência da nossa história podemos assistir a esta tendência. Foi assim em
1383-1385 quando fomos em busca do apoio inglês contra Castela e o país conseguiu
manter-se soberano, mas assim não foi em 1580, com a consequência do reino ter na
prática deixado de existir como entidade política autónoma. A restauração
renovará o modelo anterior, buscando a apoio de Londres contra Madrid, e foi como recuperamos a soberania. Assim se manteve
a estratégia diplomática nos séculos seguintes, não sendo por acaso que D Carlos[iv]
tinha muito claro existirem dois países com os quais devíamos ter relações privilegiadas:
O Reino Unido e o Brasil.
A excessiva
continentalização a que a União Europeia nos levou e o seguimento quase
monopolar de Bruxelas é um recente interregno neste modelo, mas a verdade é
que, discursos à parte, como bem o mostrou um interessante trabalho da
socióloga Rita Ribeiro[v]
os portugueses querem estar na União mas
numa relação meramente instrumental de benefícios e perdas, portanto, com uma
identificação utilitária que se opõe à emocional, ou seja, sem o sentimento de
pertença a essa “comunidade imaginada”
como a define Benedict Anderson[vi].
A EUROPA E A LITERATURA NACIONAL
Aliás, basta olhar a
literatura. Em cada momento da nossa história se conectaram identidade e literatura.
As cantigas populares e cortesãs de D Dinis, com a respectiva oficialização da
língua portuguesa, inseriram-se na luta de poder entre a coroa e a aristocracia, assim
como as crónicas e os livros de linhagens do século XIV são a afirmação
identitária com que esta responde. A cronística de base popular de Fernão Lopes
é indissociável da necessidade de legitimar um rei ilegítimo, legitimado apenas
pela vontade popular e de aristocratas de segunda linha. A invenção do milagre
de Ourique numa crónica de 1419 não teve outra função que não a de criar um
super-mito capaz de incentivar os portugueses a partirem para o desconhecido
mar, porque o faziam em nome duma profecia divina ao seu primeiro rei, servindo
também para legitimar transnacionalmente essa mesma expansão. Podíamos seguir
adiante com Camões, António Vieira, Verney, Herculano, a geração de setenta, os
modernistas com Pessoa à cabeça… Todos, mesmo todos, os períodos de diferentes
buscas identitárias transpiraram para a literatura. No entanto, o recente “grande”
desígnio união-europeísta não foi capaz de gerar uma literatura, não criou o mínimo
entusiasmo dos escritores porque tão-pouco dos leitores e dos leitores porque
tão-pouco dos escritores.
O máximo que a literatura
contemporânea portuguesa criou foi o contrário, um rechaço, que está patente em
nostálgicas páginas de Lobo Antunes que, na angústia pós-colonial que tanto o
inspira, nunca encontrou paliativo na Europa. Em Saramago, onde, numa leitura
muito pessoal, encontro uma negação da Europa em História do Cerco de Lisboa e, claramente, em Jangada de Pedra.
E nem se pode dizer que a
Europa não é em si mesma estruturalmente inspiradora, porque ela chegou a sê-lo
para a Geração de 70, pelo menos até que Eça entrou em crise e escreveu A Cidade e as Serras e, sobretudo, A Ilustre Casa de Ramires.
Esta ausência de ideal
Europeu na nossa literatura actual e, até, a existência duma ideia, se não antieuropeísta
a-europeísta, é algo que nos deveria fazer reflectir. É que a literatura, por emocional,
é o texto por excelência da identidade.
PORTUGAL E O BREXIT
De qualquer forma, a
questão era essencialmente outra: o Brexit. Depois das últimas eleições
trata-se duma inevitabilidade e, em vez de nos lamentarmos, deveríamos ver a
oportunidade. Graças ao Brexit ganhamos novos polos além da absorvente Bruxelas e, se
houve país que tenha sabido manter-se e renovar-se graças à multipolaridade,
esse país foi Portugal. Já o sabemos fazer desde a viagem de Egéria à Terra
Santa nesse distante século IV, e foi com essa habilidade que nos demos reino e
viabilidade.
Luís Novais
[i] ORÓSIO, Paulo (1986 – 417). História
Contra os Pagãos (tradução José Cardoso). Braga: Universidade do Minho.
[ii] IDÁCIO (1995 – 469). Crónica de Idácio (tradução José Cardoso), (segunda
edição). Braga: Livraria Minho, 1995
[iii] COLODRÓN, César (s.d.).Análisis
de la Figura de Idácio de Chaves a Través de los Condicionantes
Socioeconómicos, Políticos y Culturales de la Gallaecia del Silglo V. El
Cronicón. (tese de doutoramento). Coruña: Universidad de Coruña.
[vi] ANDERSON, Benedict (2017). Comunidades
Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a expansão do nacinalismo. Lisboa:
Edições 70.
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