Todo este foi o meu sentimento quando assisti na televisão a esse fim
dos tempos representado por aquele réquiem, por aqueles discursos, aquelas
caras, aquele caixão justamente coberto pela bandeira nacional, aquela voz
declamante de Maria Barroso. Talvez estejamos exaustos, não sei, talvez nos
sobrem os falsos banqueiros, os políticos corruptos, os governantes que insistem trilhar chão que já não vive. Talvez. Mas credito, quero acreditar, que temos
alternativas, que ainda contamos com os Soares e com os Sás Carneiro, que ainda temos cepa
para concretizar. Afinal, a energia, toda a energia, é o sonho.
Gosto de sentir antes de escrever
e não escrevo enquanto não sinto. Mais a mais quando quero falar de algo e
alguém sobre cuja vida e morte já tudo e de tudo se disse; do mais laudatório ao
mais infamante, do bem fundamentado ao que se baseia em boatos que não resistem
a uma rápida verificação. Refiro-me a Mário Soares, claro.
Tive o sentimento que me levou à
escrita quando na televisão vi partes da cerimónia fúnebre, com os discursos
dos filhos do ex-presidente entrecortados pelo som do réquiem, com a sua imagem
entrecortada pela dos que estavam presentes e pela dum caixão de Bandeira Nacional coberto.
Nesse preciso momento, tive um sentimento
de grande perda, mas não, não me refiro ao homem cuja morte naturalmente
lamento e me pesa, refiro-me à História. Naquele preciso momento senti que era a nossa História, um dos seus períodos, que estava a ser enterrada, que toda a
celebração era um adeus, não a alguém, mas a uma época.
Soares era um homem mais do que feito
quando se deu o 25 de Abril, tinha 50 anos. O seu percurso foi o duma geração
que começou por sonhar democracia e por ela lutou, essa mesma a que pertenceu também
outro dos pais fundadores do nosso regime, Sá Carneiro.
Depois de dar tudo por tudo pelo
modelo de regime, essa geração teve de encontrar uma alternativa ao sistema
económico fechado e colonial que era anteriormente vigente. A
descolonização foi e teve de ser apressada, não por culpa de Soares ou de
alguém depois de 1974, mas por criminosa negação daqueles que antes nos governaram e que, por se recusaram a entender o seu tempo, agiram exclusivamente a
seu modo.
Economicamente, o modelo de “capitães
de indústria” em que assentava o tecido empresarial salazarista também já
estava esgotado e não resistiria a uma competição fora dos mercados protegidos
com que antes contavam. Que eu saiba, ainda ninguém se dedicou a fazer um sério estudo sobre a situação económica dos grandes conglomerados industriais e
financeiros que se desmoronaram em 1974. Quando isso for feito, desconfio que
vamos ter surpresas ainda maiores do que aquelas que tivemos recentemente, quando nos inteiramos do estado em que estavam as nossas maiores empresas, os nossos maiores bancos… com a
diferença que estes últimos não tiveram a sorte duma revolução que pudessem culpar, que lhes lavasse a imagem, que os transformasse em vítimas de suposta espoliação.
Para aqueles que em 1974 sonhavam
com uma democracia de cariz ocidental, não restava outra via política e
económica que não fosse a europeia, e foi essa hipótese que agarraram com
unhas e dentes. Soares formalizou o pedido de adesão em 1977, Sá Carneiro
continuou-o e, finalmente, seria um Soares novamente primeiro-ministro e já
candidato a presidente quem assinou o tratado de adesão em 1986. Lembro-me bem
desse momento; talvez o facto de ter decorrido naquele mesmo espaço dos
Jerónimos, esse onde agora nos despedíamos, tenha sido a ironia que faltava para me
provocar este sentimento de estar a assistir a um fim de ciclo.
Coube depois a Cavaco Silva
operacionalizar a adesão, coisa que fez de forma medíocre, usando os recursos disponíveis
para pequena política, esbanjando, aliando-se a uma elite cleptómana e
devolvendo os grupos empresariais às mesmas famílias que os detinham antes de
1974. O custo da desastrosa situação que hoje vivemos, não é dos que nos
sonharam europeus, mas dos que, depois disso, nos conduziram até aqui. Entre
eles, o primeiro posto é ocupado por Cavaco Silva, mas está igualmente
acompanhado por Guterres e por essa inenarrável cereja no topo do bolo que
ainda se pensa político e se chama Sócrates. Passos Coelho, com a sua
frontalidade, António Costa, com a sua malabarista bonomia, são tão vítimas
destas duas décadas e meia como todos nós, e a única culpa que carregam é a de
não serem suficientemente visionários e estadistas para conseguirem apresentar
aos portugueses o sonho duma alternativa, coisa que os pais da nossa
democracia, bem ou mal, conseguiram a seu tempo fazer.
Hoje, vemos os portugueses mais
capacitados abandonarem o país, recusando-se com isso a meter nos cofres
públicos o que foi desviado para bolsos privados, temos um tecido empresarial
que, apesar das exceções, não consegue competir globalmente, existimos numa
União Europeia em desmembramento acelerado, olhamos atónitos para os Estados
Unidos transformados numa Roma de imperador incendiário… Esta é a hora, tem de ser a hora, para
repensar a geoestratégia nacional, para voltar a sonhar alternativas,
para apontar e trilhar novos caminhos.
Todo este foi o meu sentimento quando
assisti na televisão a esse fim dos tempos representado por aquele réquiem, por
aqueles discursos, aquelas caras, aquele caixão justamente coberto pela
bandeira nacional, aquela voz declamante de Maria Barroso. Talvez estejamos exaustos,
não sei, talvez nos sobrem os falsos banqueiros, os políticos corruptos, os
governantes que insistem trilhar chão que já não vive. Talvez. Mas credito,
quero acreditar, que temos alternativas, que ainda contamos com os Soares e com os Sás Carneiro, que ainda temos cepa para concretizar. Afinal, a energia, toda a
energia, é o sonho.
Luís Novais
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