Fome e sexo, coação ou incentivo, eis a moeda. Foi coação a
escravatura, com o incentivo dum melhor ou pior tratamento, foi coação o
feudalismo, com o incentivo de mais ou menos favores do senhor ao servo, é
incentivo o dinheiro, com a coação de viver sem ele.
Aquilo de que se trata quando abordamos a questão do dinheiro é de responder a uma antiga questão: “Como
obrigar os seres humanos a trabalhar?”
Esta pergunta aparentemente simples
foi permanente ao longo da história. Foi a resposta encontrada em cada momento e em cada local que determinou os diferentes modelos económicos, sociais, políticos e até religiosos.
Quem primeiro se preocupou com o
assunto foi esse ente abstrato vulgarmente conhecida como “a Natureza”. Para Ela
foi tudo muito simples: Deu-nos a fome para que nos esforçássemos a procurar
alimento, deu-nos o sexo para que nos déssemos ao trabalho da reprodução, que,
se esta fosse 100% mecânica e nada erótica, não haveria quem se desse ao
trabalho com o afinco e assiduidade necessários à reprodutividade do ato.
O mais curioso é que, uma vez
mais, se justifica a adjetivação de “sábia” com que nos referimos
à Natureza, tão sábia que o ser humano não foi capaz de mais do que copiar
as suas estratégias para se dar ao trabalho do trabalho: Ou bem que nos
coagiu pela fome para nos fazer comer, ou bem que nos incentivou pelo prazer
para que nos multiplicássemos. E é precisamente este duplo mecanismo de coação
e incentivo que a história usou para nos obrigar ao esforço.
Foi sempre assim? Aparentemente
não. Segundo reza a crónica, Adão vivia muito pacatamente no paraíso que Deus
lhe construiu, até que, vendo o irremediável tédio da coisa criada, o Criador resolveu sacar-lhe costela e ofereceu-lhe companheira, não interessa se feia ou bonita porque estes conceitos vivem duma comparação que o noivo estava impossibilitado de fazer.
Fraco remédio: Agora eram dois a levar uma vida de aborrecimento contínuo, o
que não é difícil de supor: Que cada um imagine a vida que cada um levaria, se
aquelas conversas entre encontros sexuais não fossem entre-cortadas e
se limitassem a ser em si mesmas, por muito interessantes que pudessem e possam
ser…
Eu sei que, muitas vezes, a raiva
do dia-a-dia nos leva a invectivar contra o original casal. Fazemo-lo cada vez
que acordamos ressacados ou simplesmente mal dispostos, quando nos apanhamos de
volante na mão no meio de garrafal engarrafamento, se temos de aturar um chefe
incompetente, um cliente irritante ou um fornecedor que insiste ter prestado um
excelente mau serviço. Tudo isto é insuportável e é nessas ocasiões que pensamos como
seria bom continuar no bem-bom do paraíso, sem termos de nos preocupar com arreliações
tamanhas. Mas caramba! Paremos um bocado para pensar no que foi o início de
vida daquele Adão e daquela Eva. Não resulta difícil concluir que bem maior
presente foi a condenação do que o tal Éden, o castigo do que a dádiva.
Um bocado de empatia com os
nossos avós e perguntemo-nos se, vendo-se em tais circunstâncias, qual de nós
não se babaria pelo apetecível fruto proibido. Eu não pensaria duas vezes, nem
precisaria da insistência da cobra que, coitada, pelas tontas hesitações de Eva
teve de se condenar a uma existência de eterno rastejar, e muito menos precisaria
do incentivo de Eva que, para convencer o parceiro e sem contar ainda com a
salvadora epidural, gritou de morrer quando pariu Caim, Abel, Sete e outros que
pela história não foram rezados.
Consta portanto que Deus é de mau
feitio e quando viu a árvore com toda a sua rama e sem qualquer fruto, se
enfureceu de soberba, expulsando o casal original daquele para este mundo.
E pronto, fomos postos à porta e à prova, com a roupa do corpo e uma sentença taxativa: “Tu, Eva, vais sofrer para parir
e tu, Adão, vais comer com o suor do teu rosto”. Esse terá sido o momento em que Deus
inventou também a fome, sem a qual Adão não suaria, e o orgasmo, sem o qual Eva
rejeitaria o parceiro sobrepondo a dor do parto a um coito desprazível, não
desdenhando que nem sequer o marido pensaria em chegar-se à mulher, lembrando-se das
noites mal acordadas que teria de suportar e que, por cada nascimento, passaria a suar não só por si mas por mais um.
E mitos à parte, nós, enquanto espécie, tivemos
de encontrar estratégias para nos obrigarmos a trabalhar, sendo que alguns foram
mais estrategicamente criativos do que outros e resolveram o seu problema
descobrindo a arte de fazer com que outros tivessem de suar mais e alguns ficassem
até isentos, o que, já se vê, é blasfemo incumprimento da divina condenação e é
talvez por isso que, ao contrário desses, os camelos conseguem passar alegremente
pelos buracos das agulhas.
Fome e sexo, coação ou incentivo,
eis a moeda. Foi coação a escravatura, com o incentivo dum melhor ou pior
tratamento, foi coação o feudalismo, com o incentivo de mais ou menos favores
do senhor ao servo, é incentivo o dinheiro, com a coação de viver sem ele.
O capitalismo será então um
sistema que estabeleceu o equilíbrio entre uma dose de incentivo, chamado
salário ou lucro, e uma dose de coação, chamada poder militar, prisão e,
voltamos ao mais básico, fome ou, mitigando, qualidade de vida. O desequilíbrio
dum modelo aparentemente tão bem montado dá-se quando já não
consegue distribuir o incentivo que o fundamenta e fica apenas com a coação, concretizando
essa quimera de que o Dr. Frankenstein foi apenas personagem ficcional duma
realidade cada vez mais próxima: A substituição do criador pela criatura, do
homem pela máquina, da máquina pelo robot, do robot pela inteligência
artificial.
Neste contexto, abre-se um dos
mais importantes debates dos nossos dias e, suponho, rios de tinta se gastarão
para responder a uma pergunta muito simples: “Como salvar o capitalismo de si
mesmo?”
Luís Novais
Sem comentários:
Enviar um comentário