quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

COMERÁS COM O TEU SUOR, ou, DE COMO SALVAR O CAPITALISMO DE SI MESMO

Fome e sexo, coação ou incentivo, eis a moeda. Foi coação a escravatura, com o incentivo dum melhor ou pior tratamento, foi coação o feudalismo, com o incentivo de mais ou menos favores do senhor ao servo, é incentivo o dinheiro, com a coação de viver sem ele.



Aquilo de que se trata quando abordamos a questão do dinheiro é de responder a uma antiga questão: “Como obrigar os seres humanos a trabalhar?”

Esta pergunta aparentemente simples foi permanente ao longo da história. Foi a resposta encontrada em cada momento e em cada local que determinou os diferentes modelos económicos, sociais, políticos e até religiosos.

Quem primeiro se preocupou com o assunto foi esse ente abstrato vulgarmente conhecida como “a Natureza”. Para Ela foi tudo muito simples: Deu-nos a fome para que nos esforçássemos a procurar alimento, deu-nos o sexo para que nos déssemos ao trabalho da reprodução, que, se esta fosse 100% mecânica e nada erótica, não haveria quem se desse ao trabalho com o afinco e assiduidade necessários à reprodutividade do ato.

O mais curioso é que, uma vez mais, se justifica a adjetivação de “sábia” com que  nos referimos à Natureza, tão sábia que o ser humano não foi capaz de mais do que copiar as suas estratégias para se dar ao trabalho do trabalho: Ou bem que nos coagiu pela fome para nos fazer comer, ou bem que nos incentivou pelo prazer para que nos multiplicássemos. E é precisamente este duplo mecanismo de coação e incentivo que a história usou para nos obrigar ao esforço.

Foi sempre assim? Aparentemente não. Segundo reza a crónica, Adão vivia muito pacatamente no paraíso que Deus lhe construiu, até que, vendo o irremediável tédio da coisa criada, o Criador resolveu sacar-lhe costela e ofereceu-lhe companheira, não interessa se feia ou bonita porque estes conceitos vivem duma comparação que o noivo estava impossibilitado de fazer.

Fraco remédio: Agora eram dois a levar uma vida de aborrecimento contínuo, o que não é difícil de supor: Que cada um imagine a vida que cada um levaria, se aquelas conversas entre encontros sexuais não fossem entre-cortadas e se limitassem a ser em si mesmas, por muito interessantes que pudessem e possam ser…

Eu sei que, muitas vezes, a raiva do dia-a-dia nos leva a invectivar contra o original casal. Fazemo-lo cada vez que acordamos ressacados ou simplesmente mal dispostos, quando nos apanhamos de volante na mão no meio de garrafal engarrafamento, se temos de aturar um chefe incompetente, um cliente irritante ou um fornecedor que insiste ter prestado um excelente mau serviço. Tudo isto é insuportável e é nessas ocasiões que pensamos como seria bom continuar no bem-bom do paraíso, sem termos de nos preocupar com arreliações tamanhas. Mas caramba! Paremos um bocado para pensar no que foi o início de vida daquele Adão e daquela Eva. Não resulta difícil concluir que bem maior presente foi a condenação do que o tal Éden, o castigo do que a dádiva.

Um bocado de empatia com os nossos avós e perguntemo-nos se, vendo-se em tais circunstâncias, qual de nós não se babaria pelo apetecível fruto proibido. Eu não pensaria duas vezes, nem precisaria da insistência da cobra que, coitada, pelas tontas hesitações de Eva teve de se condenar a uma existência de eterno rastejar, e muito menos precisaria do incentivo de Eva que, para convencer o parceiro e sem contar ainda com a salvadora epidural, gritou de morrer quando pariu Caim, Abel, Sete e outros que pela história não foram rezados.

Consta portanto que Deus é de mau feitio e quando viu a árvore com toda a sua rama e sem qualquer fruto, se enfureceu de soberba, expulsando o casal original daquele para este mundo.

E pronto, fomos postos à porta e à prova, com a roupa do corpo e uma sentença taxativa: “Tu, Eva, vais sofrer para parir e tu, Adão, vais comer com o suor do teu rosto”. Esse terá sido o momento em que Deus inventou também a fome, sem a qual Adão não suaria, e o orgasmo, sem o qual Eva rejeitaria o parceiro sobrepondo a dor do parto a um coito desprazível, não desdenhando que nem sequer o marido pensaria em chegar-se à mulher, lembrando-se das noites mal acordadas que teria de suportar e que, por cada nascimento, passaria a suar não só por si mas por mais um.

E mitos à parte, nós, enquanto espécie, tivemos de encontrar estratégias para nos obrigarmos a trabalhar, sendo que alguns foram mais estrategicamente criativos do que outros e resolveram o seu problema descobrindo a arte de fazer com que outros tivessem de suar mais e alguns ficassem até isentos, o que, já se vê, é blasfemo incumprimento da divina condenação e é talvez por isso que, ao contrário desses, os camelos conseguem passar alegremente pelos buracos das agulhas.

Fome e sexo, coação ou incentivo, eis a moeda. Foi coação a escravatura, com o incentivo dum melhor ou pior tratamento, foi coação o feudalismo, com o incentivo de mais ou menos favores do senhor ao servo, é incentivo o dinheiro, com a coação de viver sem ele.

O capitalismo será então um sistema que estabeleceu o equilíbrio entre uma dose de incentivo, chamado salário ou lucro, e uma dose de coação, chamada poder militar, prisão e, voltamos ao mais básico, fome ou, mitigando, qualidade de vida. O desequilíbrio dum modelo aparentemente tão bem montado dá-se quando já não consegue distribuir o incentivo que o fundamenta e fica apenas com a coação, concretizando essa quimera de que o Dr. Frankenstein foi apenas personagem ficcional duma realidade cada vez mais próxima: A substituição do criador pela criatura, do homem pela máquina, da máquina pelo robot, do robot pela inteligência artificial.

Neste contexto, abre-se um dos mais importantes debates dos nossos dias e, suponho, rios de tinta se gastarão para responder a uma pergunta muito simples: “Como salvar o capitalismo de si mesmo?”



Luís Novais

Sem comentários:

Enviar um comentário