As forças centrípetas da
globalização estarão, talvez, a intensificar a quebra de laços sociais que já conhecíamos
das grandes metrópoles. Os primeiros de entre esses laços destruídos terão sido os mais indefesos: Aqueles que têm origem em comunidades de sentimentos
positivos.
O crime de Orlando foi trágico, macabro e teve causas que chocam com as
mais profundas convicções daqueles que defendemos uma sociedade aberta e
tolerante. Não é isolado e não acontece por acaso.
O Gun Violence Archive é
uma ONG criada em 2013 e dedica-se a construir uma base de dados pública sobre
a violência com armas de fogo nos Estados Unidos. De acordo com os dados recolhidos,
só no que vai deste ano, o país já somou 23.317 incidentes, 5.967 mortos,
12.252 feridos. Entre mortos e feridos, 257 das vítimas foram crianças com
menos de 11 anos e 1.276 adolescentes até aos 17. Os assassínios em série foram
136, com um total de 72 mortos e 140 feridos, incluindo os 51 e 49 de Orlando,
respetivamente.
Entretanto, em Paris decorre o campeonato europeu de futebol. O que deveria
ser uma festa transformou-se numa batalha campal, com enfrentamentos entre
adeptos e o país em estado de sítio. Por outro lado, na Europa têm-se sucedido os atentados dum terrorismo quase self-service
que responde às mais diversas inquietudes.
Crueldade gratuita, intolerância, ódio. O certo é que a violência cidadã está
a aumentar para níveis tão óbvios que dispensam comprovação estatística. Que se
passa com o nosso tempo?
Nos últimos anos de vida, Freud dedicou-se a contradizer grande parte daquilo
que anteriormente tinha defendido. Tudo começou com a publicação de “Para além do
princípio do prazer” (1920), onde já falava num hipotético “instinto de morte”
que os seus seguidores imediatos não conseguiram absorver. Em todos os seres
vivos, em todas as células, haveria um instinto mortal que combatia o da vida. Serviria
para assegurar a sobrevivência e estava orientado ao meio externo, exceto
quando as condições se tornavam tão difíceis de ultrapassar que se voltava
contra o próprio. Tivesse o pai da psicanálise vivido mais duas décadas e
talvez revolucionasse a sua própria teoria. Como isso não era possível, tivemos
de esperar por Erich Fromm para que se deslindassem duas tendências do eu face ao
meio: Ou era que o mundo é tão difícil e imprevisível que a única via percecionada
para sobreviver é a da submissão absoluta, um comportamento que no extremo
levava ao masoquismo; ou era que, pelas mesmas razões, há que controlá-lo e
moldá-lo a nós, o que na sua radicalidade conduz ao sadismo.
Os sociólogos também pegaram no tema. Durkheim viu na origem do suicido
quatro causas, duas das quais relacionadas com a falta de vínculos e conexões
sociais.
Quando o indivíduo tem uma total incapacidade de integrar-se no meio
externo, talvez se confronte com duas opções. A primeira, uma sensação de
isolamento e impotência tão grande, que leva a atos que são simultaneamente de agressão
e de suicido. A segunda, conduz à necessidade de encontrar um grupo, uma ideia
nuclear, onde possa integrar-se e ter a solidariedade que, de outra forma, sente impossível. Esta integração revoluciona os conceitos de bem e mal e não
será por acaso que grande parte dos perpetradores de crimes de intolerância
foram eles próprios pessoas com um passado de excessos e de autodestruição, que
encontraram no fundamentalismo um sublime que lhes deu uma justificação e lhes
reorientou a vida. São os casos de Hasna Ait, que se imolou em Paris, ou de Muhammad
Youssef, que em 2015 matou 5 marines em
instalações militares norte-americanas no Tennessee.
Qual é a solução? Já Freud a procurou na célebre carta “O Porquê da Guerra”
(1933) com que respondeu a outra de Einstein: “Tudo o que favoreça a formação
de vínculos emocionais entre os homens deverá operar contra a guerra”. E, mais
adiante, defende que aquilo que faça “os homens compartirem interesses importantes,
produz esta comunidade de sentimento, estas identificações. E é nelas que a
estrutura da sociedade humana em grande parte se baseia”.
As forças centrípetas da globalização estarão, talvez, a intensificar a
quebra de laços sociais que já conhecíamos das grandes metrópoles. Os
primeiros de entre esses laços destruídos terão sido os mais
indefesos: Aqueles que têm origem em comunidades de sentimentos positivos. Abriu-se
o caminho a outras, que se entrincheiram na repulsa e que recorrem à violência
para sobreviverem.
Num mundo perdido em si mesmo, onde o ódio fortuito desponta, este será o momento para voltarmos a pensar e agir comunitariamente, incentivando
laços e solidariedades onde o ser e a subjetividade se possam enquadrar de
forma positiva e natural.
Luís Novais
Foto: Saed
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