Este livro é um retrato sem dó nem piedade daquilo que nos tornamos, do como e porquê de aqui termos chegado.
Depois de nos brindar com “No País da Porcas Saras” e “Amor e Liberdade de
Germana Pata Roxa”, em “O Mel e as Vespas” Fernando Évora oferece-nos a obra-prima
que os outros dois livros anunciavam.
Trata-se aparentemente da história de duas famílias, os Valente e os Caça
Lobos, mas o que está em confronto no desfilar de gerações é muito mais do que
uma série de narrativas; é, mesmo, muito mais do que as aventuras e desventuras
de Portugal desde o século XIX até aos nossos dias. Nestas páginas não é Portugal, mas
todo um ocidente que se confronta: uma cultura de gradual perda de identidade,
de descaraterização, de coisificação da pessoa.
Cheios de defeitos, capazes de matar, amantes e violentos. Padres que fazem
filhos em mulheres casadas e homens que disparam quando se descobrem enganados.
Arraiais de porrada e bebedeiras de meia-noite. Estes personagens vivem
intensamente, são pessoas capazes de obras aparentemente inúteis, obras que constroem
apenas porque sim, apenas porque são importantes para que o construtor seja. É
o caso dessa aparentemente escusada torre de Cancino, contruída em tempos do
Remexido por um Ovídio, o mesmo que “gastou neste projeto grande parte das suas
poupanças”. E porquê? Ilusoriamente para avisar os habitantes da aldeia sempre
que uma ameaça se aproximasse, mas onde se testemunha, isso sim, uma
participação do indivíduo na comunidade, uma torre que, sendo materialmente
inservível, perpetua o construtor como tendo sido naquele espaço e naquele
tempo. E eis que, numa metáfora aparentemente tão simples, temos toda a carga
conceptual do ser sobre o ter.
Nos nossos dias, Ovídio teria sido um louco, um esbanjador da acumulação
familiar. Mas desde Ovídio até hoje há todo um devir de que os personagens
desta obra são testemunhas e atores. Aliás, o próprio nome do “louco” construtor
apela a um tempo remoto, mais remoto do que o século XIX em que terá vivido. O
seu pai chamou-se Rómulo, tal como o fundador de Roma, e os seus filhos foram “Pompeu,
nome do general que desafiou o poder de Júlio César", e Lucrécia a filha, "bela dama
romana que pôs fim ao domínio etrusco na cidade do Tibre”. É como se Ovídio já nem
do século XIX em que viveu desse fé, um século já marcado por um capitalismo sem regra e descaracterizador. Não
será por acaso que os habitantes da aldeia olhavam a sua família “de soslaio,
considerada gente meia louca, pelo menos desde a obra falhada” (a tal torre).
Todos estes Ovídios, Pompeus e seus descendentes, vão acompanhando a marcha
do tempo. O primeiro a descrer do passado e a capitular foi seu neto Augusto,
também ele de nome imperial, filho de Pompeu. Augusto deixa o ofício tradicional
de dar caça aos lobos e compra umas terras sobre as quais “corriam lendas,
afiançavam-se estranhas aparições e teimavam-se velhas superstições”. Mas este Augusto
“era homem moderno”, “conhecedor de ciência”, “não estava para dar ouvidos a
crendices”. Desafiando mentalidades e tradições decidiu dedicar-se à
monocultura de papoilas opiáceas que pretendia exportar para Inglaterra.
O negócio não funcionou e nesta atitude de desafio mercantilista ao
passado há uma espécie de “pecado original”, uma culpa que desencadeia todas as
tragédias seguintes.
Quando leio este Mel e estas Vespas, lembro-me das palavras que Erich Fromm
escreveu em 1968, em “A Revolução da Esperança”, o mesmo livro que tem um sugestivo
subtítulo: “Rumo a uma tecnologia humanizada”. “A nova norma ética”, dizia
Fromm, “é o progresso, entendido basicamente como progresso económico, aumento
da produção, criação dum sistema de produção cada vez mais eficiente”. E adiante conclui: “O homem moderno tem tudo (…) mas nada é”.
Fromm escreveu estas palavras nos anos sessenta, tentando fazer uma prospetiva
do rumo a que o capitalismo desenfreado já levava e mais levaria o Ocidente. Não se
enganou, como já sabemos. Este mesmo rumo, desde comunidades que eram e agora aparentemente têm, consegue-se encontrar em “O Mel e as Vespas”. O enredo vai desfilando até
que Fernando Évora chega ao nosso tempo e, neste tempo que é nosso, encontra o
homem-nada, sem empatia, um ser transformado em coisa que já não consegue
dialogar, sem identidade, sem força sequer para estabelecer relações. Mas há
esperança, uma esperança que surge do encontro de si que o personagem narrador descobre
na memória do que foi.
Esta é uma obra de cronologia variável. Começa num hoje inconsciente, viaja
ao tempo do mel e regressa ao triunfo das vespas, outra vez hoje, mas com
consciência. Ao escrevê-la, Fernando Évora afirma-se como um escritor que
entende o drama da contemporaneidade, um escritor capaz de nos pôr o dedo na
ferida, escarafunchá-la, fazer-nos sofrer pelo que temos e pelo que não somos. Este livro é um retrato sem dó nem piedade daquilo que nos tornamos, do como e porquê de
aqui termos chegado.
A consciência sentida é talvez o único caminho para a reforma positiva. Ler
“O Mel e as Vespas” é sentir e consciencializar. Por isso, esta obra é
transformação e, sendo-o, é literatura em estado puro.
Luís Novais
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