Rompendo com os modelos literários da Europa Ocidental do seu tempo, “Marianela” vai muito além da novela social e de costumes, aproximando-se da literatura russa coeva. Conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição humana, sobre o “eu” na sua relação com o “outro”, o contingente e o absoluto, os conflitos éticos duma sociedade que não tem a moral conciliada com o conhecimento. Além disso, antecipa tendências literárias, levantando angustias que nos surgirão com o período modernista.
A cegueira é uma das metáforas mais exploradas nas diferentes literaturas,
incluindo a mitológica. Desde Prometeu que a oposição entre ver e não ver nos
ficou como metáfora do conhecimento e da consciência. Oferecendo a luz à humanidade, Prometeu foi agrilhoado por Zeus, castigo merecido porque a capacidade para ver, para conhecer, era um poder quase tão grande como o do próprio pai dos deuses.
Também na tradição judaica, a primeira criação é a luz. Foi por se terem
atrevido a comer o fruto do conhecimento, que Adão e Eva ganharam consciência
de si e, consequentemente, vergonha. Não menos cauteloso do que o deus grego, o
judaico expulsa o casal do paraíso, temendo que alcancem agora a árvore da vida
eterna, o que os tornaria seus semelhantes.
Platão recorreu à metáfora. Naquela caverna, o único que consegue
escapar não pode mais viver aí, porque, tendo visto a luz, os olhos com que a
viu não vislumbrariam na penumbra, e também porque os parceiros de cativeiro o
considerariam cego e blasfemo.
Outras vezes, a metáfora é usada num sentido inverso. Édipo cega-se para
ser livre: Tem de ver apenas o seu interior, se quer fugir a um destino que
corre fora de si, que o determinou e que o conduziu à tragédia.
Por cá, também o binómio luz-trevas foi usado como sinónimo de conhecimento
ou ignorância. Numa das suas disposições combativas e otimistas, escreveu
Antero dirigindo-se ao poeta e jornalista Guilherme de Azevedo:
O mesmo Antero que, num momento de resignação pessimista, escreveu “Fada Negra”:
Saramago usaria o mesmo recurso. A cegueira branca é talvez aquela que não permite ver, nem o mundo de fora nem o de dentro, e é, por isso, a verdadeira, a total, a que ofusca os dois lados da caverna, o “outro” e o “eu”. A conclusão de “Ensaio Sobre a Cegueira” conduz-nos a uma ideia, que vem na mesma linha dos trabalhos de Chomsky sobre o controle das sociedades liberais: Pessoas que veem não vendo, vivem modelos que legitimam a exploração e libertam sem libertar.
“Viva e
trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me
dado ainda ver, morrendo,
O claro
sol, amigo dos heróis” (“Mais Luz”)
O mesmo Antero que, num momento de resignação pessimista, escreveu “Fada Negra”:
Razão!
velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bem-dita sejas tu!
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bem-dita sejas tu!
Bendita
sejas tu pela agonia
E o luto funeral d'aquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!
E o luto funeral d'aquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!
Saramago usaria o mesmo recurso. A cegueira branca é talvez aquela que não permite ver, nem o mundo de fora nem o de dentro, e é, por isso, a verdadeira, a total, a que ofusca os dois lados da caverna, o “outro” e o “eu”. A conclusão de “Ensaio Sobre a Cegueira” conduz-nos a uma ideia, que vem na mesma linha dos trabalhos de Chomsky sobre o controle das sociedades liberais: Pessoas que veem não vendo, vivem modelos que legitimam a exploração e libertam sem libertar.
“Marianela”
Em “Marianela” (1878), Pérez Galdós (1843-1920) entrou também de frente e
em força na utilização desta metáfora, colando-se à caverna de Platão, mas
utilizando-a duma forma menos óbvia.
Antes de entrar na obra, devo dizer que a literatura espanhola do século
XIX era-me, e é, uma desconhecida, um desconhecimento que julgo afetar a
generalidade dos portugueses. É curioso que acompanhamos a História e a cultura
do país vizinho até ao término da guerra dos 30 anos, ou tão só até 1640. Tudo
o que se passou depois, vai entrando num limbo que, após as invasões francesas,
é quase total, com exceções óbvias para pequenos grupos de estudiosos. É um
pouco como se as luzes de Paris, que ofuscaram a nossa geração de 1870, e que
aqui chegaram à força do carvão e do comboio, continuassem a ofuscar-nos,
negando-nos a luz para o que se passava numa Espanha que era então decadente e
que, para os nossos intelectuais desse tempo, estava longe de ser modelo ou
sinónimo de progresso.
Consciente desta falha, decidi que era hora de superá-la e aproveitei a
Feira Internacional do Livro de Lima para me abastecer. Acabo de ler o primeiro
de muitos livros que trouxe comigo, “Marianela”.
Para usar a mesma metáfora, o comentário que faço, é, assim, como as
primeiras impressões de quem não viu durante anos, de quem começa a tatear com
os olhos um mundo nunca antes conhecido. Seria talvez mais cauteloso não
comentar esta obra antes de “honesto estudo com longa experiência misturado”,
mas decidi-me pelo atrevimento: Talvez as primeiras impressões, as primeiras
conclusões, as primeiras comparações, possam ser as menos preconceituosas e as
mais genuínas. Do ponto de vista pessoal, também me servirá para mais tarde
poder compreender o meu próprio percurso pelo conhecimento desta literatura,
uma empresa para a qual a primeira leitura de Galdós me alentou.
A surpresa
Estava habituado às leituras do século XIX francês e inglês que, depois do
sentimentalismo romântico, foram entrando de frente num positivismo de denúncia
social, primeiro realista, depois naturalista. Do outro lado, conheço bem a
literatura russa, a que mais aprecio, e, de entre esta, sobretudo a do mestre
dos mestres que foi Dostoievski, percursor de, no mínimo, duas ou três gerações
literárias. Trata-se duma escrita que penetrou a fundo na natureza das grandes
questões humanas, indo muito além da crónica de costumes, então muito em voga
na Europa ocidental. Uma crónica, ora ácida ora sarcástica, que além Báltico foi
bem representada por Gogol, e aquém por Flaubert ou Balzac, Dickens ou Zola e,
claro, pelo nosso Eça.
Sem que estivesse preparado para isso, Pérez Galdós faz-me a surpresa de conduzir a uma literatura das profundezas humanas, tão característica dos
russos de seu tempo, mas contrária às correntes então vigentes na Europa ocidental.
Entrando na história
A história parte duma metáfora aparentemente simples. Marianela é a pobre
órfã, criada de favor pela família dum capataz de mina. Foi desprezada desde
sempre, e não teve outra educação que não fosse aquela que aprendeu por si
mesma, observando bosques, montanhas e penedos. Dela dirá o Dr. Teodoro Golfin,
o médico que, inadvertidamente, desencadeará a tragédia: “…és uma pessoa
admirável, nascida para o bem mas desvirtuada pelo estado selvagem em que
viveste, pelo abandono e pela falta de instrução”.
Desprezada pelo entorno, Marienela ama Pablo Penáguilas, o jovem cego de
quem é guia, o único herdeiro do abastado proprietário Francisco Penáguillas.
Este jovem aparece como uma espécie de “Alegoria da Caverna” inversa: “Não
vejo o mundo de fora, mas vejo o de dentro, e todas as maravilhas da tua alma
foram-me reveladas desde que te tornaste na minha guia”, diz a Marianela (p
77).
Pablo, o invisual, é uma espécie do oposto de Marianela, a sensitiva. Pablo
é belo, Marianela é feia; Pablo amado dentro da família, Marianela órfã e
desprezada pelos adotantes; Pablo rico, Marianela pobre; Pablo, o cego que imagina
a realidade desde o interior de si mesmo, Marianela, a sensitiva que gera
ideias dispersas a partir da literalidade do que vê.
De onde nos vem o conhecimento?
Partindo desta dualidade, entramos na vertente mais abordadas na
obra, que é a origem do conhecimento humano. “Desde que tenho uso da razão –
diz Pablo durante uma caminhada com a sua guia - que o meu pai costuma ler-me
todas as noites diversos livros de Ciências e de História, de artes e de
entretenimento. Essas leituras e estes passeios, posso dizer que são a minha
vida toda” (p 82). Quando os autores escrevem com claridade, diria ele a
seguir, os livros “Contêm ideias sobre as causas e os efeitos, sobre o porquê
do que pensamos e o modo como pensamos, e ensinam a essência das coisas” (p
83).
Avançando a partir daqui, surpreende-nos um livro contem em si todas as
filosofias, desde as mais antigas até à modernista crise da racionalidade.
Poderíamos discorrer capítulos e capítulos, onde abordássemos a relação entre
“Marianela” e a clássica abordagem platónica, poderíamos entrar na medieval
questão dos universais, no racionalismo cartesiano, no empirismo inglês… mas
são talvez as questões e as respostas kantianas aquelas que surgem com mais
força, talvez porque o próprio Kante é a sintese de todas estas correntes.
“Marianela” é escrito por volta de 1878, tinha Galdós 35 anos. Kant morreu
74 anos antes e as suas principais obras perfaziam 93 e 86 anos, nos casos respetivos da “Crítica
da Razão Pura” e da “Crítica da Razão Prática”. A filosofia do
professor de Konigsberg estava profusamente difundida e a influência direta já
era a dos discípulos que procuraram suprir a brechas do enorme edifício teórico
do mestre. Entre eles, Hegel, que morreu em 1831, quatro anos antes do
nascimento do autor de “Marianela”.
Contemporâneo desta obra foi Karl Marx, cujo materialismo bebeu de Hegel, o mesmo que lhe permitiu considerar o homem como parte dum
movimento universal que o transcendia e, como tal, apenas uma peça da dialética
a que tinha de pertencer, sem ter o direito de dominá-la ou, sequer, capacidade
para fazê-lo.
Em “Marianela” podemos encontrar as inquietudes que resultam de um Kant
revisitado, observar os desenvolvimentos filosóficos que se lhe seguiram e
encontrar as dúvidas surgidas com a crise da racionalidade, que rebentou vários
anos depois da sua publicação. Esta obra de grande profundidade é, assim, uma
espécie de ponte entre a racionalidade do século XVIII e a crise dessa
racionalidade no século XX.
Um pouco de História da Filosofia
Tendo a ciência de ser simultaneamente universal e progressiva, até que
surgisse a Filosofia de Kant lidou-se mal com a relação contraditória destas
duas necessidades, aparentemente inconciliáveis. A universalidade, filha direta
do pensamento medieval e de base teológica, lidava mal com o experimentalismo herdado
do renascimento. Aparentemente, o eterno universal não rima com a inconstância evolutiva.
Já desde Descartes se sabia que esta questão estava irresoluta e nem o
mestre do racionalismo moderno deverá ter acreditado na resposta glandular que
deu, quando lhe perguntaram pelo ponto de encontro entre a res cogita e a res extensa.
Os avanços de Leibnitz e sobretudo de Espinoza foram passos em frente, mas para
os iluministas do século XVIII era já claro que algumas das conclusões de
Leibnitz eram risíveis. Voltaire mostrou-o com um humor ácido em “Cândido”.
O problema agudiza-se se nos lembrarmos que, enquanto no continente se
desenvolvia este racionalismo universalista, no reino Unido surgia um empirismo
que redundou na negação de qualquer conhecimento universal e no mais radical
dos subjetivismos.
Decididamente, havia cabos soltos que precisavam de ser ligados, e foi a
isso que Kant (1724-1804) se dedicou
O problema da relação entre o universal e a mudança, foi o grande objeto da
resposta que o filósofo de Konigsberg deu em “Crítica da Razão Pura” (1788): As
noções de espaço e tempo existem a priori
e não podem observar-se porque são tudo sendo nada, são formas interiores e sem
conteúdo que nos dotam de capacidade para conhecer. Por outro lado, o mundo
exterior fornece-nos um “caos de sensações” sintéticas, que será catalogado e
transformado em conhecimento, graças a essas formas universais apriorísticas. A
faculdade de conhecer seria, assim, uma espécie de biblioteca, onde a
organização classificativa detém o carater universal apriorístico, e os livros catalogados
em estantes são as sensações sintéticas, que entraram como caos e foram
arrumados com um sentido. Estava criado o conceito de “juízos sintéticos a priori” e, duma penada, conciliavam-se
2500 anos de filosofias aparentemente inconciliáveis.
Resolvendo esta difícil equação, Kant conciliou a universalidade com a
mudança, dotando o século XIX da ferramenta que lhe faltava para que se
transformasse, como se transformou, no século da ciência. Se as elites desse
período estavam certas de atingir a verdade e, até, o bem, graças à liturgia do
método científico e ao primado da lei científica, isso deve-se ao pensamento
daquele homem aparentemente obscuro, que pouco mais mundo conheceu do que a
calçada que levava de sua casa à universidade de Konigsberg.
A personagem “sintética” e o
personagem “á priori”
Em “Marianela” encontramos muitos destes conceitos, e também as incertezas
que já se geravam e que anunciavam a crise do racionalismo no século XX.
Marianela, a personagem principal, é uma espécie de “caos desordenado”, sem
forma, ela vê o mundo sem o organizar mentalmente, sem criar conceitos, sem lhe
dar uma ordem. Cada observação é algo em si mesmo, que ela compara
instintivamente com um outro algo e une numa espécie de bondade aglutinadora,
materializada na ideia de beleza que lhe dá a Virgem Maria.
Num dos muitos passeios que dava com Pablo, este começa a falar dum livro
que seu pai lhe leu, sobre o conceito de beleza. Não alcançando o conceito,
Marianela precisou de concretizar: “…não será como um (livro) que tem o Padre
Centeno, que se chama… As mil e não sei quantas noites?” (p 83) Pablo
responde-lhe que não, que se refere ao conceito universal. Uma vez mais, a
resposta de Marianela é sintética: “Como por exemplo a Virgem Maria (…) a quem
não vemos nem tocamos, porque as imagens não são ela mesma se não o seu
retrato” (p 84). A conversa continua, mas “Nela, pouco atenta a coisas tão
subtis, retirava as flores das mãos do seu amigo e combinava-as pelas suas
cores exuberantes” (p 84).
Fixemo-nos neste diálogo para traçar agora o perfil de conhecimento de
Pablo. Referindo-se ao livro, diz o jovem cego que “O autor falava da beleza, e
dizia que era o resplendor da bondade e da verdade, junto com muitos outros
conceitos engenhosos e tão bem referidos e pensados que dava gosto ouvi-los” (p
83). É aqui que Marianela fala nas “Mil e não sei quantas noites”. A resposta
ao sintetismo da jovem é apriorística: “Não é isso, tontinha; o livro fala da
beleza em absoluto… Não serás capaz de entender a beleza ideal?... Claro que
não entendes… Como hás de saber de uma beleza que não se vê, nem se toca, nem
se apreende com nenhum sentido?” (pp 83-84).
Os exemplos poderiam multiplicar-se. Ao longo de todo o livro, Marianela é
a parte sintética e Pablo a parte apriorística dos juízos sintéticos
apriorísticos que Kant teorizou. Isto fica muito claro neste mesmo diálogo:
Enquanto Pablo lhe fala de beleza, Marianela vê-a, ele fala do
conceito, ela faz um ramo de flores exuberantemente coloridas... que ele não
pode ver.
A forma universal como um Pablo cego analisa o mundo, deixa bem clara a sua
incapacidade para entender algo fora dessa universalidade. Só assim se compreende
que faça desabafos como, “…às vezes o que tem mais vista, vê menos” (p 86), ou,
“O dom da vista pode causar grandes desvios… afasta os homens da compreensão da
verdade absoluta”.
As faculdades que se complementam
Fruto desta complementaridade, entre Pablo e Marianela desenvolve-se uma
ligação amorosa. É como se Galdós nos quisesse transmitir a ideia que não podemos
viver apenas do universal, ou apenas do sintético. “Acabas de dizer mil
disparates – diz-lhe Pablo – e eu, que conheço um pouco a verdade, o mundo e a
religião, senti-me comovido e entusiasmado enquanto te ouvia. Sinto desejos de
que fales dentro de mim”. A resposta deixa clara a complementaridade: “(sinto
que) estou no mundo para ser a tua guia, e que os meus olhos não serviriam para
nada se não servissem para guiar-te e contar-te como são todas as belezas ” (p 77).
Analisando o mundo apenas com base em conceitos, Pablo parece incapaz de
estabelecer uma separação entre estes e o sintetismo do “caos de sensações”. Por
isso não imagina possível que Marianela possa ser sensorialmente feia: “Prefiro
não ver a tua beleza com os olhos, porque vejo-a dentro de mim, clara como a
verdade que proclamo interiormente”.
O drama
O drama entra em cena pelas mãos do Dr. Teodoro Golfin, o oftalmologista
que opera Pablo, devolvendo-lhe a visão. Intuitiva, Marianela compreende
imediatamente o que isso significa: “Quem é a Nela? – pergunta-se – Ninguém. A Nela só é algo para o cego. Se os seus olhos se curam e me vê, caio morta… Ele
é o único para quem a Nela não é menos do que os gatos e os cães”.
Entretanto, entra em cena Florentina, a prima de Pablo, ela sim dotada de
uma grande beleza física e que os respetivos pais procuram casar. Desesperada,
quando se inteira de que o cego recuperou a visão, Marianela foge, não quer que
ele a veja e pensa no suicídio. É encontrada pelo Dr. Golfin a quem jura que Pablo
jamais a verá:
O cego vê
“- E porquê?
- Porque
(sou) muito feia… Pode amar-se a filha da Canela (a sua mãe) quando se tem os
olhos fechados, mas quando se abrem e se vê a menina Florentina, não se pode
amar a pobre e ridícula Marianela…” (pp 216-217)
O cego vê
Com um Pablo desperto para um mundo que nunca antes vira, Galdós conduz-nos
de novo a kant, para quem o espaço e o tempo eram as duas faculdades apriorísticas
que nos permitiam transformar em conhecimentos “o caos de sensações”. Tendo do
espaço uma ideia que nunca observou, é precisamente a visão da
tridimensionalidade aquela que tem mais dificuldade a dominar:
“As
imagens entravam, digamos assim, pelo seu cérebro violenta e atabalhoadamente
com uma espécie de investida brusca, de tal modo que ele pensava chocar contra
os objetos; as montanhas distantes pareciam-lhe ao alcance da mão, e via os
objetos e as pessoas que o rodeavam tal como se rapidamente pudessem cair sobre
os seus olhos” (pp 227-228)
E é então que toma consciência da diversidade, do “caos de informação” que, entrando pelos sentidos, formam o conhecimento. “Tudo isto é belo e grandioso, ainda que me faça estremecer” (p 229).
O drama atinge o climax quando Pablo encara Marianela e, tendo-a idealizado
bela, só realmente a reconhece quando esta estendeu “uma mão magra, morena e
áspera, e tomou a do moço Penáguillas, que, ao sentir o seu contacto,
estremeceu dos pés à cabeça e lançou um grito em que toda a sua alma gritava”.
Afinal, a Marianela que aprioristicamente imaginou dotada de toda a beleza, era
aquela criatura frágil e feia.
A jovem já não tinha qualquer papel neste mundo. Deu dois beijos na mão de
Pablo “…e ao dar o terceiro, os seus lábios deslizaram inertes”. “Matou-a! Maldita
seja a sua vista!”, gritou o Dr. Golfin.
Pablo recuperou a visão e, com a visão, a capacidade para encher o espaço e
o tempo com as sensações do mundo, o mesmo papel que até aí era a missão de Nela.
Quebrou-se a aliança: O jovem recuperou o que Marianela lhe dava, sem que ela tivesse reciprocidade, exceto por uma vaga e inconsequente promessa do Dr.
Golfin, que prometia uma educação que a mudaria.
Anunciando outras crises
Como disse, vejo este livro como uma ponte entre as certezas que nasceram
no século XVIII, que se tornaram dominantes no XIX, e as dúvidas e angústias do
século XX, dominado pela crise da racionalidade. Essa ponte com o que estaria
para vir, é estabelecida também pelo Dr Golfin, um médico crente na
racionalidade, na Ciência e na capacidade para reformar o ser humano a partir
do conhecimento.
É de tal forma assim, que o médico analisa Marianela como um fruto da falta
de educação e pretende reformá-la. Num capitulo significativamente intitulado “Domesticação”
(p 208), diz-lhe: “Pobre criatura, abandonada aos teus sentimentos naturais,
sem instrução nem religião, sem nenhum apoio afetivo e desinteressado que te
guie” (p 210). E conclui umas páginas depois:
“És uma
pessoa admirável, nascida para o bem, mas desvirtuada pelo estado selvagem em
que viveste, pelo abandono e pela falta de instrução, pois falta-te até o mais
elementar!
(…)
Vou
ensaiar em ti um sistema de educação… veremos se sei lapidar esse bonito
diamante. Ah, quantas coisas desconheces! Eu descobrirei um novo mundo na tua
alma, farei com que vejas mil maravilhas assombrosas que até agora não
conheceste (…)” (pp 222). “Mas saberás tudo, serás outra. Deixarás de
ser a Nela, prometo-te, para seres uma menina com mérito, uma senhora de bem” (p
224)
Esta fé do médico na força da educação científica para reformar a
sociedade, expressa-a também numa conversa sobre Nela que tem com Florentina: “É
um exemplo do estado a que chegam seres moralmente organizados para o bem, para
a sabedoria, para a virtude, mas que pelo abandono e desdenho não podem
desenvolver o potencial da sua alma (…) Não tem mais educação, além da que ela
mesma se deu, como uma planta que se fecunda com as suas próprias folhas secas”
(p 247).
A fé do médico na educação fica claramente expressa na continuação deste
diálogo. “…vamos trazê-la ao nosso século”, e “…é o mesmo que criar um novo ser”
(p 249).
Mas este médico cheio de certezas na ciência e no papel reformador da
educação, entrará em crise quando conclui que foi a sua “boa” ciência que
conduziu àquela trágica morte. “Matou-a!”, exclamou para Pablo, “Maldita seja a
sua vista!”, o mesmo é dizer que, maldito seja eu, maldita a ciência que
quebrou essa harmonia.
É no decurso da trágica morte que as certezas do médico se transformam em
crise: já não sabe o que sabe, já não sabe se a sua ciência conduz ao bem. “Não
sei se morre de vergonha, de ciúme, de despeito, de tristeza, de amor contrariado.
Singular patologia! Não, não sabemos nada…, sabemos apenas o que é trivial”.
Florentina responde-lhe também com descrença: “Oh, que médicos!” A esta
observação, Golfin contrapõe apenas um desabafo: “Não sabemos nada, conhecemos um
pouco da superfície” (p 260).
Ao longo da obra, o Dr.
Golfin surge como um símbolo da modernidade. Ele é um homem que confia na
capacidade da ciência para criar o verdadeiro conhecimento, para gerar o bem, e
acredita na sua própria capacidade para agir sobre o mundo. Numa palavra, o
médico é o produto acabado da filosofia kantiana: Alguém que uniu o absoluto e
o contingente dentro de si mesmo e que, portanto, é profundamente livre.
Se Kant escreveu a “Critica da razão Pura”, onde desenvolveu uma teoria do
conhecimento que uniu milhares de anos de teses filosóficas inconciliadas,
escreveu também “Crítica da Razão Prática”, onde entrou no caminho da moral e
da lei moral. “Age como se a tua ação devesse tornar-se, através da tua
vontade, uma lei universal”, o imperativo categórico é uma espécie de átomo
moral, a partir do qual estaríamos preparados para tomar todas as decisões.
No entanto, se Kant deixou brilhantemente resolvido o problema da relação
entre o universal e o contingente, criou uma nova disfunção, que é a existente
entre a moral, o imperativo categórico, e uma ação, dirigida por “juízos sintéticos
a priori”. Ou seja, entre um agir dirigido pelo conhecimento da razão pura, e
outro que se baseie na razão prática. A ciência, a grande ciência, a deusa do
século XIX, podia afinal ser imoral!... e foi-o, como demonstraria a História.
Foi na constatação desta difícil conciliação que nasceu a Filosofia de
Nietzche (1844-1900) e que se inaugurou a angustia modernista, tão bem
representada em autores como kafka (1883-1924), James Joyce (1882-1941), o
nosso Pessoa (1888-1935) e pelo percursor Oscar Wilde (1854-1900).
Conclusão
Rompendo com os modelos literários da Europa Ocidental do seu tempo, “Marianela”
vai muito além da novela social e de costumes, aproximando-se da literatura
russa da mesma época. Conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição humana, sobre o
“eu” na sua relação com o “outro”, o contingente e o absoluto, os conflitos éticos
duma sociedade que não tem a moral conciliada com o conhecimento. Além disso,
antecipa tendências literárias, levantando angustias que nos surgirão com o
período modernista.
Luís Novais
Nota:
Usei a seguinte edição: PEREZ GALDOZ, Benito. MARIENELA. Alianza Editorial,
Madrid, 2008 (primeira edição, 1878),. A edição que tenho é original em língua
castelhana, optei por traduzir todas as citações.
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