Custa acreditar. Um primeiro-ministro radicalmente intransigente,
autoridades autonómicas que não recuam um milímetro, uma polícia estupidamente
brutal, a rua que não se rende. E no fim, o rei, esse rei que podia ser rei
real, e afinal é rei momo, incapaz de assumir a sua responsabilidade histórica,
que pega na espada de matador e quer também dar uma estocada, nessa mesma arena
onde já ficaram tantos, assim dos que foram para morrer e viveram, como dos que
foram para matar e morreram.
Ninguém entendeu tão bem Espanha na metáfora duma corrida de touros como
Hemingway. O toureiro e o orgulho do toureiro, o touro fero, o confronto
brutal, onde se joga a vida e o sangue, literalmente. E por fim a glória de
viver ou morrer, enfrentando o risco, morrer para viver ou viver para,
orgulhosamente, morrer.
Noutros azimutes, Georges Bataille entendeu o significado antropológico dum
conflito, onde a parte sacrificada se santifica, por deixar de ser parte, una,
individual, para se emular no todo, no eterno plotoch primitivo, nesse holocausto em que, aos deuses, os Ulisses ofereceram latejantes carnes taurinas.
Voltando ao touro e ao toureiro: Não é viável o recuo, recuar é profano num
ritual que se repete, olhos raiados em olhos raiados, em sangues que se vertem
e se misturam, em tragédia que constrói o ser. Alguém tem de morrer, seja touro,
glorificado pela bravura, seja toureiro, herói eternamente recordado porque à
vista de todos deu vida para que todos sejam todos. Entre o touro e o toureiro
estabelece-se uma aliança que não pode ser quebrada, que se quebra se uma das
partes recua e desiste de destruir a outra, de aniquilar, dessangrar.
O que parece incompreensível na questão catalã, é isto. Como é que duas
partes se enfrentam sem deixar margem de recuo, resquício de negociação,
possibilidade de ambos darem um passo atrás para que ambos possam seguir vivos?
Não, não lhes é possível: A vida é uma arena, um deles tem de morrer!
Não conseguimos entender o ponto a que se chegou sem olhar
para esta luta literal em que tantas vezes se transformam os metafóricos touro e toureiro.
Quanto aos fundamentos históricos, há-os para todos os gostos. Podíamos viajar
à antiga Ampurias, num gesto semelhante ao recuo mitológico que nós portugueses
fazemos a Viriato. Podíamos também considerar os séculos que vão do XI a 1734,
data que a generalidade dos catalães considera a da perda da independência, o fim
da guerra da sucessão entre Austrias e Bourbons.
Datas há-as para todos os gostos, havendo quem afirme que a Catalunha foi
independente, frente a quem contradiga, com mesma tamanha certeza.
Não nos enredemos nesta discussão, que de tão secular e difusa, só muito
levemente ajuda a explicar aquilo que se está a passar ali e agora. E ali e
agora, é uma arena.
Centremo-nos no 30 de setembro de 2005 quando, depois dum intrincado
processo entre o governo central e as tendências internas, o parlamento da Catalunha
aprova o Estatuto Catalão, com os votos contra do Partido Popular (PP), esse
partido a que, nesta história, assenta bem esse intransigente e
orgulhoso personagem: El matador.
O novo estatuto entrou em vigor depois dum referendo onde obteve 74% dos
votos. O texto final dava uma ampla autonomia à região, mitigada por uma prévia
intensa negociação com o socialista Rodriguez Zapatero, primeiro-ministro de
então, que teve de enfrentar o próprio partido para conseguir um acordo, criticado
até por Filipe Gonzalez, o líder histórico.
Mas dos Zapateros não reza o sangue da arena e a arena ali estava, apelativa.
O matador nunca desiste, o seu objetivo é fatal: matar ou morrer. Vencidos nas
cortes, os populares juntam 50.000 apoiantes na Plaza del Sol, e um
esfuziante Mariano Rajoy profere incendiário discurso:
"No hay más que una nación, la española, que
formamos todos los españoles. Y no reconocemos más que un único poder soberano,
cuyo propietario es el pueblo español entero". E conclui: "No
hablamos el lenguaje antiguo de los derechos históricos, las soberanías medievales
o los pueblos irredentos" (El
País)
Depois destas palavras profusamente badaladas, Rajoy concretiza a estocada
e recorre para o tribunal constitucional, apoiado em assinaturas, apoiado noutros
organismos nacionais e também nalguns poderes regionais. A sentença sai a 28
de junho de 2010 e anula diversos artigos, alguns de carga afetiva, como os
relacionados com a língua ou com o estatuto de nação (texto
integral da sentença). Rajoy, o matador, rejubilou e recebeu uma ovação na
arena.
Humilhados, mais de um milhão de catalães manifestam-se em Barcelona, sob
um lema lancinante: “Som una nació. Nosaltres decidim” (“Somos uma nação, nós
decidimos”) (ver
aqui). A espada não cruzou o coração, o confronto tinha de prosseguir.
A 9 de Novembro de 2014, depois
dum acordo entre os partidos nacionalistas catalães, decorre um referendo, também
este anulado pelo tribunal constitucional. Mas o matador Rajoy estava fragilizado
pela crise económica e pelo escândalo de corrupção que rebentou em Janeiro de
2013 (ver).
Até a própria coroa, afetada por diversos escândalos, enfrentava a
abdicação de Juan Carlos I (19 de junho de 2014), pretexto para manifestações de
rua onde se exigiu que o regime monárquico fosse referendado.
Nestas condições, o matador estava
ferido. Era a hora dos líderes catalães assumirem o orgulhoso papel na arena,
enfrentando o touro de Madrid com um referendo que, na prática, foi
inconsequente por ser também declarado inconstitucional, mas que Rajoy não conseguiu
impedir. Num resultado considerado transparente, o “sim” à independência obteve
81% dos votos.
Desta vez, a estocada, ainda que
simbólica, acertou no matador. Os dois lados ainda se mantinham vivos e um
tinha de morrer, cada um devia morte ao outro.
E assim chegamos ao primeiro de
Outubro. O que parece incrível a olhos pouco acostumados ao sangue na arena, é
que todos tenham dado o tudo por tudo, que todos se enfrentem, sem se
oferecerem qualquer possibilidade de recuo. Animados pela meia vitória de 2014,
os nacionalistas decidiram que era a hora de investir. Rajoy estava fortalecido
pela retoma, tinha conseguido ultrapassar os escândalos de corrupção mais ou
menos incólume, e contava com a certeza de um novo rei, aparentemente reforçado
e comprovadamente fácil de manietar. Mas este primeiro-ministro já não era matador diante
de touro, agora eram dois matadores frente a frente, e um tinha de morrer,
era a Hora, era o tudo ou nada.
E o resultado foi o que estamos a
ver: A intransigência nacionalista dum lado e, do outro, o obtuso cumprimento
duma decisão judicial, feito com uma brutalidade que, em vez de matar o
atacado, feriu talvez de morte o atacante.
Restava uma esperança: o rei. Um
rei relativamente jovem, possivelmente sensível, capaz talvez de congregar.
Filipe VI mantinha-se calado, sussurrava-se que prudentemente, que estava
reservado para poder congregar, pacificar, juntar o que estava dividido. Era o
discurso da sua vida, como o da vida de seu pai foi aquele que proferiu no dia 24 de
fevereiro de 1981, salvando a democracia e legitimando a coroa.
Às 21:00 do 3 de outubro, os
olhos estavam postos nas televisões, o próprio presidente da Generalitat catalã
ainda não tinha aberto o jogo. O rei poderia ser de copas, reconhecendo
aspirações, erros de parte a parte, chamando ao diálogo e pondo-se como penhor
de um acordo a alcançar. Mas Filipe VI decidiu apenas ser mais um personagem nessa
trágica arena onde alguém tem de sair morto, absolutamente morto: Acusa as
autoridades catalãs de “uma falta de lealdade inadmissível em relação aos
poderes do Estado”, acusa-os de “uma conduta irresponsável”, de terem vindo “a
falhar, de forma reiterada, consciente e deliberada, no cumprimento da
Constituição”. Quando entrou era de copas, quando saiu era de espadas, as
espadas do matador, as daquele que não reconhece outro direito à outra parte, que não
seja a derrota, total, fatal.
Do lado oposto, as respostas não
se fizeram esperar: O rei já é visto como líder de fação. Quem esteve atento às
reações, conclui que o único resultado deste discurso foi aumentar a
radicalização das duas partes, todos se afastaram mais ainda, ninguém se
aproximou. Pouco depois, Puigdemont afirmava à imprensa que iria declarar a
independência, já estava mais ou menos claro que esta era a única via que lhe
deixavam.
Provavelmente, Espanha perdeu Catalunha,
por intransigência, por erros... meu Deus, que tamanhos erros! Mas atenção: ainda
há vivos, a tragédia corre numa arena que continua à espera de mais sangue,
tudo pode não ficar por aqui.
Custa acreditar. Um
primeiro-ministro radicalmente intransigente, autoridades autonómicas que não
recuam um milímetro, uma polícia estupidamente brutal, a rua que não se rende. E
no fim, o rei, esse rei que podia ser rei real, e afinal é rei momo, incapaz de
assumir a sua responsabilidade histórica, que pega na espada de matador e quer também
dar uma estocada, nessa mesma arena onde já ficaram tantos, assim dos que foram
para morrer e viveram, como dos que foram para matar e morreram.
É triste, é incompreensível, mas é
Espanha e é Fiesta! Agradeço ao
Mestre de Aviz.
Luís Novais
Foto: "Corrida", Picasso
Sem comentários:
Enviar um comentário