segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Moinh'e vent'II

Um dia era noite.
Do dia que dia fora,
noite noite se pôs.
E dia noite ficou.

Cego de noite
e cego de mim:
não te vi.
Em vão errei

Foi noite cerrada.
Dias com dias de noite.
Tantos que nem sei.

E se por essa noit’errei:
não ignoro porquê:
sei que soube q’um dia
noite dia seria.

Errei.
E de tão errante:
acertei.
E uma noit'era dia.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Vivo presente não vivo futuro

Vivo presente não vivo futuro.

Ontem nasci: mo disseram.
Disso testemunha não sou.
Certo de q’ hoje vivo,
do mim d'ontem não sei.

Poderia amanhã nascer,
sem hoje viver?
S’amanhã nascerei,
testemunho não tenho,
nem meu nem d’alguém

Disseram-mo: ontem nasci.
E s'ontem hoje não foi:
hoje e só hoje é que vivo.

Mas d’hoje não gosto
e d’ontem já foi.

E ninguém que me deixe
amanhã nascer,
porque s’o peço
hoj'é q'o faço.

Ontem já foi.
Amanhã não é.
Vivo presente.
Não vivo futuro (dizem-me).

E eu? Serei?
Viverei?

Copacabana, 2009-12-12

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Baralhada Ordem.

Baralhada Ordem.

Grave ruído.
Contínuo ruído.
Trem’a terra.
Terrível tremor.
Ou canto d’entranha.
Terra que canta
cantando mostra.

Espantado ruído.
Qual seja?
Pássaros qu’ouvem
ruído de terra,
de terra que treme,
que tremendo canta.
Ruído de espanto.
Fogem caça
e caçador.

Deslizante ruído.
Mudo quase.
Nervoso deslize.
Que deslize?
De serpente,
que ross’a terra
e a pressente.
Qu’a ouve sem ouvir.
Desliz’a serpente
e seu encantador.

Brutal ruído.
Esmagador.
De que brutal?
Que esmaga?
Esmaga terr’e gente.
Esmag’a serpente.
Sem ouvir ouviu.
E d’ouvir agiu:
maremoto.

Terra que ruge.
Pássaro qu’ouve.
Serpente que sente.
Gente que pensa.
Mar que reage.
Alguns ouvindo,
outros sentindo,
alguns reagindo.

Esse grave ruído.
Contínuo ruído
de terra que treme.

Estranh’união
à terra que treme.

Destruição ou criação?
ser ou Ser?
Gota ou mar?
Infern’ou paraíso?

Nada absurdo
no grave ruído,
na terra que treme.
Destruind’constroi.
Baralhando ordena.

Ruído de terra.
De terra que treme.
Absurdo: nada.
Quand’à terra tornar
e o grave ruído
nada absurdo
de mim e si
ruído for.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Brisa vent’é qund’sol serena

Brisa vent’é qund’sol serena

Quisera ficar completo,
em metade de inteiro.
Essa metade eu fosse,
em meio ser eu coubesse.

Meia mulher teria,
C’a meia amante completa.
Meio pai também:
meia labuta tem de ser.

Oh, que unidade ser meio.
Meio de meio entender.
Meio pensador, poeta até.

Mas meio é-me pouco.
Quero ser por inteiro.
Inda que de meio louco,
louco inteiro acab'eu

Inda assim que louco seja.
Marido , pai e poeta.
Mas nad’e nad’em meio,
tud’e tudo por inteiro.

Será possível ou quimera?
Tantos são os elementos:
(quimera s’assim é)
Brisa vent’é qund’sol serena:
(possível se assim seja)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Moinho e Vento

Moinho e Vento

Que dor é esta, amor.
Dor é de lembrar,
dor de esquecer
o que lembrado é.

Sei-te quem sejas, amor.
Quem sou não sei.
Só sei de mim em ti.
Só de ti em mim sei.

S' em ti busc' o que sou.
Em mim sabes qu' és.
De nós brotou mim ti.

Se mim em ti porquê?
Se fruto nosso.
Querido fruto.
Amada tu.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Remédios.

Mataram-me.
De parto brotei,
d’escola morri:
cidadão me fizeram.

Perguntaram-me?
Não. Quiseram fizeram.
E mataram-me.

Não me quis sabedor.
Sabedor me tornaram.
Só e só queria sentir.

Mas comigo não!

Quero meu parto.
Quer’a nascer voltar.
Quer’ ignorar e sentir.
Quer’ à escola fugir.

Morra bem mort’ o saber.
Saber qu’ocup’ o que sou.
Saber falso e não sentido,
não sentid’e sem sentido.

Mataram-me.
Remédios haverá?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Creio em ciência teorias e lei

Creio em ciência, teoria lei:
Particular geral
diverso d’ uno.
Ensinaram-mo: “crê” e eu creio

Creio bem sabendo:
crendo-‘a mato.
Matá-la quero:
crer preciso.

Gent’à lei sumetemos,
crença velha renovamos:
Destino

Feridos de ciência que’stamos,
do destino descremos.
Mago destino: liberdade compra.
Mago destino: com inocênci’a paga.

Quem d’inocente se troca livre?
Antes sem culpa qu’arbitrar.
Roubaram-no: só culpa ficou

Eu não qu’eu creio na ciência,
porque crendo por crenç’a mato.
Porque suas leis rezando (teorias),
fado qu’é meu alcanço.

Assim sem da fé sofrer Auto,
à “santa” sem ofens’a matar.
Nessa lei que geral dizem,
inocência minha destilar.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Corrompidos Restos

Antigamente eram os construtores os que tinham fama de corromper. Corromper é sempre corromper. Mas sempre era um corromper para construir.

Agora são os sucateiros. Já nem para construir se corrompe. Corrompe-se tão só para levar os corrompidos restos.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Inexistêncial.

Tantos são que dizem
qu’esse que digo outro,
visão é de não mim
por existencial de mim,

que para mim olho
e de mim me temo
que mim afogue mim.

Mim serei eu; sou!
Mas mim será outro?
Então que mim serei,
s’outro se faz mim?

De mim quero ser Ser,
que mim não será,
quem si Ser quer também.

E sendo mim Ser.
E Ser sendo si.
Mim é si por Ser.
E si por Ser é mim.

Filosofal Pedra

Do tanto muito que penso,
tod’a sua origem ignoro.
Origem de pensamento “eu”,
ou pensar q’a mim cria?

Vej’o Mundo vendo-me
e vendo-me par’o ter:
por cosmos troco mim:
cego me vejo par’o ver.

Acontece quando cego sou:
idei’acontece: idei’apenas.
cegueira? Sombra sem limite.

E é então que sorrio; descanso.
Podend’a pedra ser filosofal (ela),
pod’a filosofia ser pedra (eu)

domingo, 1 de novembro de 2009

A Voz

Quand’em fundo silêncio,
vinda do longe ouço
voz forte que fala
e ordenante m’ordena.

Não sei que voz seja:
Se voz minha feita mim,
s’alheia voz, feita de quê?

Sei q’a ouço, isso sei.
Sei q’ordena, isso sei
Sei o quê, sei também.

Em sua força me diz: “Vive!”
E eu não sei o que seja:
Se voz da q’é natural,
se precedente imaterial

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O defeito das qualidades.

Hoje ocorreu-me que na política as pessoas são mais vezes afastadas pelas suas qualidades do que pelos seus defeitos.

Um preço para uma vida humana!

O jornal "Público" de hoje entrevista Joaquim Martinez. Equatoriano. Residente na Florida. Condenado à pena capital. Três anos no corredor da morte. Teve sorte: com dificuldades várias conseguiu que lhe repetissem o julgamento. Segundo veredicto: inocente. Hoje é activista da abolição da pena de morte.

“Público: Quando é que os Estados Unidos se juntarão aos países abolicionistas?
J. Martinez: Há estados como o Texas, a California ou a Florida, que estão a tomar o pulso ao que gastam com isso. Matar uma pessoa pode custar um milhão de dólares, dez vezes mais do que mandá-la para prisão perpétua.”

Li uma vez e tive de ler outra e outra. Não acreditava no que lia. É uma tabela de preços e não a inviolabilidade da vida humana que pode levar à abolição. Que mundo é este?

domingo, 9 de agosto de 2009

Em cama tua.

EM CAMA TUA

Deitas-te. Deito-te.
Lentamente te deitas.
Lentamente te deito.
Lábios de mim, lábios de ti.
Pescoço teu, lábios meus.
Lábios de mim, lábios de ti.
Sensuais são: esses teus lábios meus.
Lábios de mim, lábios de ti.
Abandonas-te de ti: desse ti q’é teu.
Sinto-te! Co’as mãos te sinto,
nesse ti q’a mim se entrega.
Mãos: dedos de minhas mãos.
Dedos: pontas de meus dedos.
Navegadores navegantes navegando.
Por ti fêmea onde mais fêmea és.
Navegadores navegantes navegando.
Por ti em mar q’alevantando se vai.
Passagens, suaves passagens: leves.
De suaves que tocam sem tocar.
De leves que agitam sem agitar.
Lábios de mim, lábios de ti.
Vestes tuas, vestes minhas.
Fêmea és em flor de pele.
Pele tens em flor de fêmea: arrepiada
Mãos de mim em ti.
Intensidade projectada:
em mamas que tuas são,
que de tuas minhas se fazem.
Libertas-te. Envolves-te
Arfas. Desejas.
Beijos. Beijos que prosseguem,
q’em corrente seguem.
Corrente de rio que foz tem.
Deslumbro-me: vejo’sol,
esse teu tatuado sol.
Sol que é nascente.
Nascente de sol em foz de rio.
Principio de sol e fim de rio.
Nascente e foz em princípio de tudo;
em fusão de fim com princípio,
na púbis tua que tens lisa.
E intensa respiras.
Expiras corpo. Inspiras mente:
Corpo que se faz mente,
mente que se faz corpo.
Voz minha em língua tua:
“Open your eyes!”
Olhos meus em olhos teus
E eu estou em ti!
E tu estás em mim!

Amor de quem faz poesia.


AMOR DE QUEM FAZ POESIA.

Amor de quem faz poesia,
(Ah!) perene cousa é:
para não menos c’hua vida.

De voltas e revoltas é’vida,
sempre sabemos quantas houve.
Mas em sabendo dessas havidas:
nunca agouramos as que hão-de.

Amor de quem faz poesia,
(Ah!) sofrida cousa é:
dura quase meia vida.

Às voltas sabemos começo.
Jamais o seu finar prevemos.
Algua razão povo terá:
“Nem dous desta vida som dias”

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Mim e si

Mim e si

Olho pela janela e vejo-a.
Ver-me-á? Ver-se-á?
A ponte não é.

Olho pelo espelho e vejo-me.
Ver-me-ei? Serei?
Devolvam-me a ponte!
Liberte-se o mim de mim.

Atendem-me: a ponte é.
Inda não a cruzei.
Mim e si em cada lado.

Grito coragem: "À ponte!"
Atravesso-a e já não sou.
Nem mim nem si,
nem ponte nem chão.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Eu laico, me confesso

Eu laico, me confesso

O não outro do outro sou.
O não eu do eu o outro é.
deus que Deus seja mo tiraram.

Sendo o não outro do outro, sei:
o não eu do eu, como eu é.
Posso fiar-lhe o que de mim não fio?
Não posso, mas Outro é ninguém.

Vêem aquém do alcançável horizonte.
O eu pró outro e o outro pró eu.
Quanto haverá que se não alcança?

Mas se eu do outro me não fio.
Se eu do eu me não fio também.
Eu laico, me confesso:
falta-me O que mostra mais pr’além

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Olá.

Olá.
Essa palavra que me deste: distância terá?
Essa palavra que me deste: cerca estaria?
Distante seja ou cerca até, mas avessada.

Se cerca: é o q’ao longe vejo.
Se distante: é o q’ao perto tenho.
Ao perto é o ver do não ver: escuridão.
Ao longe é o mal ver do ver: janela.

E nessa janela já tamanha foi a luz.
Luz foi de te ver te sentir: te ter.
De me veres me sentires: me teres.

Foste tu sem ti.
Fui eu sem mim.
Fui mim em ti.
Foste ti em mim.

Neutra palavra que é tudo e é nada.
Que é e o contrário do que é.
Sim no não ou não no sim.

Olá!

quarta-feira, 29 de julho de 2009

ATLÂNTIDA

E agastados com tamanha contradição entre tamanha pequenez e tamanha grandeza: agarramo-nos à fatalidade europeia. Estamos na Europa sem amarmos a Europa. Estamos na Europa por fatais razões quantitativas. E estamos na Europa sem que a Europa esteja em nós. Porque esta Europa foi criada para resolver problemas que nunca foram problemas nossos.


Dei comigo a reler “Os Lusíadas”. Há muitos anos que não os lia: desde que a escola me obrigou. Mas agora leio-os porque quero, porque os procurei. E espanto-me. O “eu canto o ilustre peito Lusitano” não me parece a exaltação dum nacionalismo bolorento.

Hoje tive mais um sintoma. Comprei a biografia de Nuno Alvares. E estou ansioso por acabar Camões. E por saber mais do Condestável. Talvez o fundador do Portugal moderno. E assim: talvez o fundador do mundo moderno.

Que quererá isto dizer? Poderei ser português e estar tão interessado em Portugal? Será compatível? Afinal os portugueses andam tão zangados com Portugal. Afinal os portugueses parecem tão incapazes de fazer as pazes com Portugal.

É verdade que Portugal se põe a jeito. Primeiro faz-nos sonhar com uma grandeza; a de ontem. Depois só nos oferece pequenez; a de hoje. E nós destilamos tudo: destilamos em remorsos e destilamos em cada português achar que é melhor do que Portugal.

E agastados com tamanha contradição entre tamanha pequenez e tamanha grandeza: agarramo-nos à fatalidade europeia. Estamos na Europa sem amarmos a Europa. Estamos na Europa por fatais razões quantitativas. E estamos na Europa sem que a Europa esteja em nós. Porque esta Europa foi criada para resolver problemas que nunca foram problemas nossos: problemas com raízes que são históricas e com raízes que são geográficas. Problemas que começam no século VI. Problemas que vão de Espanha à Hungria. Enfim: problemas dos europeus Impérios continentais. Problemas dessa mesma Europa que tão metaforizada está na opção napoleónica: vender a Louisiana para combater no continente… sem falar nos cento e cinquenta anos que se seguiram.

Foi para resolver esta Europa-continente que a Europa-União surgiu.

Mas este é um palco que nunca foi palco nosso. Momentos da História houve em que nos forçaram a ser actores dessa tragédia. E sempre que tal nos aconteceu: afundamo-nos em armadas que se diziam invencíveis.

A verdade é que se fôssemos continentais: nós já não seriamos nós. Se fossemos continentais: teríamos sido um desses extintos reinos ibéricos: reinos que hoje mais não são do que uma entre muitas marcas heráldicas no escudo dos Bourbon.

Talvez seja essa a razão do nosso desconforto. Estamos desconfortáveis porque intuímos esta desadequação. Para um lado: aquilo que sentimos que somos. Para o outro lado: aquilo para onde estamos obrigados a caminhar.

Esforçamo-nos para tentar vestir esta pele que nos espartilha. E assim espartilhados: ficamos entre a realisticamente impossível dimensão dum passado que foi nosso e a realidade duma Europa criada para resolver problemas de outro passado: dum passado que não é nosso. Enfim: uma Europa criada para unir o que não fomos nós a desunir.

E espartilhados que estamos: o discurso fica desolador. Perdemos toda a nossa energia a tentar dimensão épica no comezinho: mais um ponto ou menos um ponto num deficit e Aquiles matou Heitor. A localização dum aeroporto e Ulisses fugiu à terrível Calipso. Um computador dito nacional e o herói chegou a Ítaca. Uma linha de comboio… E enfim: quando ficamos com uma terrível sensação de vazio: temos o recorrente debate: tão estéril quanto serôdio: a bendita regionalização. Ou então valemo-nos de algumas manobras de diversão: legalizamos ou não legalizamos o aborto? Legalizamos ou não legalizamos as drogas leves? Legalizamos ou não legalizamos o casamento homossexual? E assim andamos.

Acrescente-se uma mão cheia de estrangeirados de pendor anglo-saxónico. São estrangeirados como convém aos estrangeirados : uma minoria: uma elite que adora a sua pequena expressão quantitativa compensada por uma desproporcionada vénia institucional. Estes são os que gostam do exemplo irlandês. Os que acham que devíamos ter a Irlanda por modelo. Dizem benchmark em vez de exemplo e goals em vez de objectivos.

Eu tenho uma razão para não me apegar a estrangeirados. Num país em crise é muito fácil sair e depois chegar e depois debitar receitas. Claro que o problema é sempre o mesmo: as receitas dum doente aplicadas a outro: não funcionam. O pombalismo terminou na viradeira e a viradeira terminou em guerra civil. E depois da guerra civil tivemos o Portugal que já sabemos que temos. Devíamos aprender alguma coisa com o exemplo do nosso passado. Pelo menos mais do que com o celebrado modelo irlandês, ou benchmark.

Será que funciona começar hoje o que os outros fizeram ontem? Ou será que nos devemos desviar do caminho que outros já percorreram e lançarmo-nos à criação da nossa própria criatura?

Que criatura será essa?

Lanço um desafio: desafio o maior adepto desse Frankenstein chamado União a fazer duas viagens.

A primeira dessas viagens pode começar em Madrid e acabar na mais recôndita vila do Curdistão turco. E se digo o Curdistão turco é porque temos de ser realistas quanto ao que inevitavelmente irá acontecer na Europa-União. Claro que bastaria ficar pela Polónia, Hungria ou Roménia. Mas indo às ultimas consequências: vá-se até esse lugarejo do Curdistão turco.

E depois faça-se outra viagem. Comece-se em Cabo Verde e depois passe-se por Luanda e termine-se no mais recôndito lugarejo da Rondónia ou de Mato Grosso. Enfim: conheça-se a Atlântida. E eu chamo-lhe assim tão só para fazer uma distinção entre este Atlântico de língua portuguesa e o Atlântico ele mesmo.

E depois regresse-se. E esqueça-se os fantasmas do passado porque os fantasmas do passado deixam de ser fantasmas em democracia. E agora sim. Agora que já se regressou das duas viagens e agora que os fantasmas do passado são tão só do passado: reflicta-se.

Onde devíamos querer estar? Qual é a União por que devíamos estar trabalhar? O que é que faz mais sentido? E o que faz sentido em Lisboa não fará também sentido em Luanda e em Brasília?
E não é uma questão de não gostar dos outros: os europeus. Claro que gosto. No que me toca sou fascinado pela diferença. Mas só está preparado para admirar a diferença quem sabe quem é. E portanto é uma questão de sabermos quem somos. E sabendo quem somos: sabermos com quem somos aquilo que somos. E sabendo com quem somos aquilo que somos: de nos cumprirmos.

E eu confesso que há outra razão por que gosto de chamar Atlântida a este espaço. É porque talvez a Atlântida mais não tenha sido do que um sonho. E a mim agrada-me: dar o nome dum sonho a um sonho. Mas isto sou eu que sou diletante. Que não consigo viver sem a minha utopia.


Luís Novais

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mais um caso. Desta vez na Bélgica.

Quando os pais e as mães se esquecem dos filhos nas traseiras dos automóveis. Quando os filhos ficam nesses automóveis até morrerem de desidratação. Quando isso acontece ao mesmo tempo que esses pais e essas mães estão a trabalhar. Quando isso acontece: não será altura de pararmos e de repensarmos a pressão a que estão a ser sujeitos os pais e as mães, nós?

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A Puta.

Ela acaba de abrir a porta de alumínio que dá entrada para o prédio. O prédio dorme. Está quase a acordar. Mas ainda não. Por agora ainda dorme. E ela já entrou no prédio e já ao prédio fechou a porta. Fechou-lha ela para que por si a porta se não fechasse: em estrondo que acordaria o prédio pouco antes de ser tempo do prédio acordar. E é por isso que o prédio continua a gozar os últimos instantes: em minutos de sono.

Agora que ao prédio fechou a porta: ela respira fundo: sente-se aliviada. É sempre assim que se sente todos os dias quando ao prédio fecha a porta: aliviada. E se o é: é tão só porque a partir daquela hora todas as horas são suas. Todas até à hora em que o prédio janta e vê as notícias e palita os dentes e depois das notícias vê a novela e antes ou depois da novela veste o pijama e depois de vestir o pijama vai dormir. E é esse o momento em que ela todos os dias sai do prédio. E quando todos os dias sai do prédio e fecha a porta para que a porta não se feche por si: ela respira fundo. É um respirar fundo igual ao respirar fundo de quando chega: mas apenas na aparência: a partir do momento em que fecha aquela porta e está na rua: a partir desse momento todas as horas deixam de ser suas. Passam a ser “horas da casa”. Horas contadas em meias horas e por vezes até em quartos de horas. Horas e meias e quartos de horas dos clientes.
Mas agora não. Agora ela está a chegar ao prédio e o prédio ainda dorme e as horas voltam a ser suas. É que ela acaba de fechar a porta do prédio. E a esta hora fecha-a consigo do lado de dentro. Fecha-a para que a porta não se feche por si mesma: em estrondo que acorde o prédio pouco antes de ser tempo do prédio acordar. Não é por preocupação com o prédio que ela não quer que o prédio acorde. Não! É tão só porque o tempo começa agora a contar para si: é seu: muito seu: inteiramente seu. E ela não quer que o prédio dê por ela: no tempo que é seu ela não quer que ninguém a tome por sua.

Sobe a escada. É em mármore branco com veios. Alguns dos veios já eram do mármore quando o mármore se fez mármore. Outros não: outros são veios do uso: do desgaste. E enquanto ela sobe: ela pensa nos seus próprios veios. Quais do seus veios já seriam seus quando ela foi feita ela? E quais já seriam seus quando ela se fez ela? E quais já seriam seus quando os outros a fizeram ela? É por esta ordem que ela põe as suas coisas quando olha para os veios dela, da escada.

E continua a subir a escada. Vai com os sapatos de salto numa mão. Vai com a carteira de dourados esbatidos na outra mão. E continua a subir a escada. Até nem são muitos, os degraus que ela tem de subir. Mas a partir do momento em que fecha a porta do prédio: os pensamentos de si para si são tantos: são tão velozes: tantos e tão velozes que criam a ilusão de serem muitos, os degraus que ela tem de subir. Mas não: não são. São bem poucos, até.

Na verdade ela só conhece aquelas escadas de as subir. Descer desce sempre pelo elevador. O prédio está quase a ir dormir quando ela desce. Mas ainda não dorme. E por isso ela desce pelo elevador: não se importa com o barulho que o elevador faz. E há sempre quem saia do prédio à mesma hora que ela. O que nunca há é quem chegue quando ela chega. E é por isso que subir sobe-se pelas escadas puídas e descer desce-se pelo elevador, pelo menos para ela é assim.

Já subiu. Está frente à porta do apartamento a que chama seu. É desenvernizada, a porta. E tem lustro: mas apenas em volta da fechadura e do puxador. O puxador goza da mesma duplicidade: tem verdete no mais recôndito de si e lustro no mais palpável. Talvez uma duplicidade universal. E o prédio dorme: continua a dormir.

Ela. Ela mete a chave na porta: enfia-a com suavidade: como ela acha que a porta gostaria de ser enfiada. E o prédio dorme. E ela roda a chave: a mesma suavidade com que a enfiou. E o prédio dorme. E a porta abre-se a ela: lentamente: está bem oleada. E o prédio dorme e ela entra na casa a que chama sua.

Já está dentro da casa a que chama sua, ela. E caminha nas pontas dos pés: o prédio ainda dorme. E ela suspira. Despe-se. É frente ao espelho que se despe. Gosta de se ver. Não se despe para ninguém como se despe para si. É que aquelas horas são suas.

Já se despiu. Não se lava: nem de corpo e nem de dentes. Fá-lo sempre na “Casa”: antes de sair. É que a partir do momento em que deixa a “Casa” o tempo passa a contar para si. E ela acha que deve deixar a porcaria do tempo que é o tempo dos outros na “Casa” que é a casa dos outros. Não quer transportar essa porcaria para o tempo que é o seu tempo. Muito menos para a casa que é a sua casa, ou a que chama a sua casa.

Já está nua. Está de costas deitada na cama e está nua. Vê a lâmpada no tecto: a lâmpada no tecto está nua como ela. Olha para o lado: o espelho do armário: o espelho mostra ela a ela: nua. E enquanto se vê nua: enumera: enumera quantos prazeres iludiu nessa noite. E enquanto os enumera: continua deitada e nua e livre neste tempo que é o seu. E como está livre: sente-se, livre. As mãos que estavam estendidas no extremos dos braços estendidos para lá da cabeça: começam a vir até si. Uma dessas mãos queda-se na boca, um dedo: apenas um dedo. A outra não: a outra percorre-a descendo e descendo. E pára: o bico grosso duma mama: afaga-o. Engrossa mais. E conforme engrossa o bico: levanta-se-lhe a anca: destaca-se-lhe a púbis no espelho: no espelho do armário. E é até lá que no espelho ela se vê ir: com a mão a cobrir essa púbis que agora se não vê e os dedos que são seus afogados no que é seu. Está toda ela concentrada em si: pleno gozo do tempo que é seu. E estremece. Estremece de corpo todo. Apetece-lhe gritar. Não grita. O prédio ainda dorme e aquele grito seria um grito verdadeiro e como seria um grito verdadeiro é um grito só seu: só seu, só para si. E é por isso que gritado é: mas gritado dela para ela.

Apaga a luz. E fecha os olhos. E dorme. Dorme consigo. Goza. Goza daquele tempo que é seu. E o prédio acorda. E usa o elevador. E deixa a porta bater.
Agora que acordou: o prédio não se importa que ela durma. E ela também não.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Húmus

Quando tudo o que queremos
do morrer que será nosso:
é que esse nosso morrer seja
morte morrida sem doer:

Esquecemos, talvez. Esquecemos,
que morrer morre-se,
que viver vive-se.
E que de tanto à dor do morrer fugir,
a dor do viver não iludimos.

Quando tudo o que queremos
do morrer que será nosso:
é fugir desse medo,
desse medo d’em húmus finar:

Esquecemos, talvez. Esquecemos,
que de tanto a morte matarmos
a vida, essa não a vivemos.

Nostalgia do absoluto.

São dois, os partos nossos.
Esses em que nascemos
daquilo que nos precede.
E em que daquilo que nos precede:
somos naquilo que é procedido.

E são dois, esses partos.
Um em que da carne que precede
fazemo-nos carne que a procede.
E gente somos. E gente nascemos.

E são dois, nossos partos.
Outro em que da gente que somos:
usamos a carne que precede.
E da carne que precede:
fazemos o “eu” que a procede.
E pessoa somos. E pessoa nascemos.

Quereria que fossem três, os partos.
Um de gente que nos precede.
E um de pessoa que somos.
E um Daquilo que precede o que procede:
precede tudo o que é,
precede tudo o que não é.
Quereria. Quereria.

domingo, 14 de junho de 2009

Irão e Razão e Emoção.

Tenho falado com alguns iranianos na Europa. Nenhum deles é conservador. Nenhum deles apoia Ahmedinejad.

Se queremos perceber o que se passa no Irão: temos de fechar os nossos olhos ocidentais. Temos de tentar perceber os acontecimentos sob o ponto de vista do outro. E há um aspecto em que nós ocidentais somos como todos os outros, por muito que ainda achemos que não: somos muito emotivos e pouco racionais.

M. é um iraniano que bebe cerveja e que come a carne proibida e que se afirma muçulmano de tradição mas não de prática. Uma atitude bem europeia, portanto. Está a fazer um doutoramento na Europa. É apoiante de Musavi. Quando lhe perguntei o que acha do negacionismo de Ahmedinejad: respondeu-me de imediato que não concorda com o presidente. Mas pensa que qualquer pessoa deve ter o direito de negar a dimensão do holocausto. “Eu não nego o holocausto. Acho mesmo que é uma tremenda ignorância histórica fazê-lo”, diz. “ Mas por que é que a Europa acusa o Irão de falta de liberdade de expressão e em grande parte dos países europeus prendem quem negar o holocausto?” Touché.

A grandeza de outrora e que foi a do Império Persa brilha nos olhos de todos os iranianos com quem falo. E essa é a promessa que Ahmedinejad tem feito: uma afirmação internacional de posições nacionais. Nenhum iraniano me parece imune a este apelo que vem do seu inconsciente histórico. E a promessa de transformar o Irão numa potência nuclear é só uma delas. A outra é conseguir ter todo o mundo contra. É muito soberano: ter o mundo quase todo contra. Poucos impérios se podem dar ao luxo de ter um “outro relevante” com essa dimensão. E por muito que a razão aponte outras vias: há sempre o apelo emocional.

Ainda ontem estive num grupo onde M. estava. A talhe de foice falamos de Portugal. E falamos da nossa presença no Oriente e nomeadamente no seu país. E ele nomeou Ormuz. E foi impossível não vislumbrar um brilho nos olhos de todos os portugueses que participavam da conversa. M. não interferiu nesse brilho dos olhos portugueses: mas tento perceber qual seria a reacção do grupo se M. tivesse sido menos diplomático: se tivesse falado da nossa expansão como quem fala dum crime. E se assim tivesse sido: não duvido nem um instante: os argumentos que nos foram ensinados em décadas de propaganda historiográfica surgiriam à flor da pele. E lá estaríamos todos a apresentar a M. a clássica argumentação do Império benigno.

Ainda assim e mesmo sem a provocação de M.: lá se foi falando do Império. E alguns acusando a Inglaterra de nos ter traído. E outros acusando a Espanha. E nenhum pondo em causa a legitimidade própria do império.

É que nós somos como todos os outros: muito emotivos e pouco racionais. E eu dou comigo a pensar como seriamos hoje. Como seriamos hoje se tivéssemos as segundas maiores reservas mundiais de petróleo e gás natural? E se tivéssemos a Espanha e o Reino Unido e muitos outros dependentes da nossa produção? Acredito que muitas humilhações históricas que agora são apenas murmuradas ribombariam nos nossos ouvidos. Que muitos ultimatos seriam recordados. Que muitos políticos explorariam esses amargos de boca. E que provavelmente ganhariam eleições, esses políticos.

Queiramos ou não (e eu não queria) o discurso de Ahmedinejad tem muito eco nos iranianos. Independentemente de Ahmedinejad ter sido o escolhido de 63% dos iranianos ou de 45%.

E talvez em todo o Ocidente nós portugueses sejamos dos mais habilitados a perceber o que se passa no Irão. Nós e talvez os austríacos. Por razão da emoção.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Uma Aventura Inquietante

Leio “Uma Aventura Inquietante” de José Rodrigues Miguéis.

A acção decorre entre o fim da década de vinte e o início da de trinta. Começou a ser escrita em 1934. E é como o título: inquietante. Sobretudo quando lida em 2009. Está lá tudo o que é actual. Estão os tablóides deturpadores e deformadores da opinião pequeno-burguesa. Está lá a justiça-injustiça. Está lá a classe média que alimenta a grande finança e perde tudo. Está lá a expiação no ódio ao estrangeiro…

Está lá tudo. Está lá absolutamente tudo. E hoje sabemos como acabou tudo aquilo. Acabou no nazismo e no fascismo e na guerra civil de Espanha e nos holocaustos da II Guerra e em Portugal acabou numa ditadura que perdurou. Está lá tudo. Absolutamente tudo. E tudo aquilo acabou no que sabemos que acabou.

Até onde nos levará isto tudo: o de hoje?

É definitivamente “Uma Aventura Inquietante”.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Micro-memórias dum desconhecido.

Nota prévia: Por engano entregaram-me estas folhas juntamente com umas fotocópias que pedi. Não resisti a ser indiscreto: a partilhá-las.

As minhas micro-memórias.
Quando entrei para a escola queria ser arqueólogo. Daqueles arqueólogos que são arqueólogos no Egipto. Esses descobridores de múmias e de pirâmides e de outros tesouros como sejam até arcas perdidas, que destas últimas ainda não se falava no tempo em que o quis ser.
Ainda puto mas menos puto quis ser escritor. Na quarta classe comecei um livro com um grupo de colegas: escrevíamos um capítulo alternadamente. Claro que não funcionou. Cada um encarnou um dos personagens e quando era a sua vez de escrever só fazia tropelias aos outros. E pensado bem: talvez até tenha funcionado: talvez assim tivesse ficado mais parecido com a realidade. Mas nessa altura éramos putos. E como éramos putos ainda achávamos que a realidade era diferente da realidade. E por isso não acabamos o nosso livro.
Desiludido com a escrita terminei a escola primário. Descobri que queria ser historiador. Como historiador quis sucessivamente ser arqueólogo (nesta altura já era mais abrangente: já não precisava de ser no Egipto) e depois medievalista e depois contemporanearista.
Devo reconhecer que a fase mais difícil foi a primeiríssima: quando quis ser arqueólogo no Egipto. Os meu pais não gostavam nada daquela mania do puto: esburacar-lhes o jardim. E fartavam-se de me explicar que era impossível encontrar pirâmides enterradas no nosso quintal. É claro que eu não acreditava. E continuava a escavar. Até que um dia deu-se aquilo que parecia um milagre: havia mesmo uma pirâmide no quintal! Mas não era no local onde eu escavava: era mesmo ao lado. Eu explico. Nesse dia trabalhei mais arduamente do que trabalhara até aí. E talvez por isso: ao lado da minha vala de arqueólogo havia uma grande pirâmide: uma pirâmide feita de terra: do monte de terra que eu tinha tirado do buraco. E o meu pai quase ficou em catatonia quando chegou a casa. E dessa vez fui mesmo coagido a acabar com as minhas pesquisas arqueológicos… nesse tempo havia métodos educativos verdadeiramente eficazes… mas no fundo no fundo: continuo com a certeza de que há uma pirâmide enterrada algures naquele quintal. E um dia ainda vou tirar esta teima!
Tudo isto foi intervalado com a fase em que quis ser mágico. Essa fase teve de característico um clube de magia de que eu era o único sócio. Orgulho-me: comecei-o do nada. Hoje-em-dia fala-se tanto das garage-corporations: essas que são grandes empresas mas que começaram numa garagem. Mas eu comecei a ser mágico duma forma ainda mais embrionária. Claro que tive sorte com a forma como evoluiu o processo civilizacional. Mas soube tirar partido disso. E segundo dizem é aí que está o génio. Sucede que por esse tempo estava a deixar de ser moda que o almoço de domingo fosse criado em casa. Ganhava-se aquela ideia de que animais em casa são da família e que a família não se come (com conhecidas excepções que têm sido casos de justiça nos últimos tempos). Atentos ao andar da História: os meus pais concluíram que já não fazia sentido criar os galináceos intra-muros e no seio do agregado familiar. Foi por isso que também o nosso almoço de domingo passou a ser de aviário e a nossa ultima galinha teve até tempo de ganhar nome próprio para além de nome de espécie. Morreu de velha e foi enterrada e julgo que foi até chorada, a Micas.
Sucede que com a morte da micas: vagou o condomínio fechado onde a micas residia. E foi também assim que consegui instalações próprias para o meu clube de magia do qual eu ainda era o sócio único. Mas cá comigo pensei que tendo instalações assim tão condignas: precisava também de ter mais sócios. Confesso que neste ultimo projecto contei com uma grande ajuda chamada “Páginas Amarelas”. Sem elas jamais teria conseguido. Quem hoje-em-dia está familiarizado com a internet não imagina quão difíceis eram esses tempos em que fui pioneiro do que futuramente viria a chamar-se direct-marketing. E toca de escrever uma carta a todos os mágicos: “convido-o para sócio do clube de mágicos”. Era uma carta digna, muito: ia escrita à máquina e tudo!
Orgulhosamente orgulhoso fiquei quando um dos mágicos apareceu lá em casa. Estava eu no quintal. “É aqui o clube de mágicos?” “É sim. Mas a sede é nas traseiras.” E lá fomos para o antiga assoalhada da saudosa Micas. E pelo caminho lá foi o mágico perguntando-me se o presidente do clube estava. E lá foi sabendo que o presidente do clube era mesmo eu. E lá fomos chegando à sede. E ainda hoje estou convencido de que dessa vez fiz magia mesmo a sério: o mágico desapareceu para nunca mais aparecer. E ainda hoje me esforço para perceber como usei desse poder que é meu. Sobretudo quando ouço alguns políticos a falar.
Avançando no tempo que esta mania de ser mágico foi um parênteses e já está maior do que a história toda.
Da fase de mágico passei para a de domador de animais selvagens. De alguma forma deveria estar com uma tendência circense. Mas o que interessa é que consegui. Uma vez mais sou a prova viva e vivida de que a tenacidade compensa. E consegui sob a forma dum grilo que treinei para o funambulismo: essa arte humana de caminhar sobre uma corda que se diz bamba. Arte humana, não: disso tenho a prova provada. Com sangue suor e lágrimas consegui amestrar o meu grilo para essa tal de funambulismo. E ele fazia-o melhor do que qualquer humano. Mas, ó triste sina: sofreu grave acidente: a corda estava a dois palmos do chão e o pobre animal caiu. E atenção: dois palmos pode parecer pouco para nós que somos mais altos. Mas ponham-se esses dois palmos à proporção da altura destes comedores de alface: pode imaginar-se a gravidade da situação.
Nesse preciso momento decidi que tinha de salvar aquele herói. E de domador de feras fiz-me imediatamente noutra vocação: queria ser médico: queria salvar o meu grilo funambulista. E dei o meu melhor. De algodão ensopado com álcool em riste: e tudo chapado sobre o pobre do acidentado. Mas em poucos segundos vim a perceber que não aguentava ser médico. Afinal esforçara-me tanto. E ainda assim não o salvara! A dor de alma era muita e dessa dor de alma um médico não pode padecer. Pobre grilo! E de médico me fiz coveiro: paz à sua alma.
E tudo isto foi passando sem que eu desistisse completamente da arqueologia e da História. Digamos: talvez no meu percurso a magia e a domesticação de grilos funambulistas tenha sido a expressão da minha crise dos oito anos: a passagem de putíssimo para puto. Mas agora já não, agora estava superada a crise e uns anitos depois até me pus a pesquisar o que julgava ser a História da minha vida, pondo-me a fazer a tal árvore que dizem genealógica... aquilo que um francês que também é historiador disse ser culto dos mortos: a identidade dos que ainda vivem na vida dos que já não. Desprezando tão mal-intencionado gaulês, passava noites a imaginar o romance que escreveria com tamanha coleção de mortos, eu. Coisa épica a sério, que Gonçalo Ramires era um pindérico e agora a coisa era comigo.
E entretanto lá fui crescendo e ganhando penugem e começando a sentir aquelas ânsias das partes a que chamam baixas mas que na verdade são intermédias. E lá chegaria o tempo de ir para a Universidade. E obviamente que quando tocou a escolher curso: foi para História que fui. Queria vir a ser investigador, um historiador a sério. Mas, é claro, na Universidade lá me desiludi com a Universidade. Mas o problema devia ser meu: afinal eu já falhara algumas vezes: falhara como mágico porque a única magia que conseguira fora a do desaparecimento de outro mágico e falhara como funambulista de grilos e até como médico de grilos funambulistas. E como eu sabia que a culpa era minha e não da Universidade, tomei uma decisão: já que lá estava deveria tirar partido desses tempos. Esses mesmos que pouco originalmente costumávamos dizer que eram os melhores da nossa vida. Fui presidente da minha Associação Académica durante três anos e isso fez-me ganhar o gosto pelas coisas da liderança, por essa arte tão nobre e sublime: a política.
Curso terminado preparava-me para ser professor de História. Mas um então ministro convidou-me para almoçar. Resultado: 24 horas depois era adjunto. Gostei da experiência mas percebi que afinal detestava a política: se era para fazer ilusionismo então preferia regressar à magia.
Regressei isso sim à vida civil e foi o Reitor da minha Universidade que me convidou para desenvolver um projecto. Não durei seis meses. Despedi-me. Decidi que tinha de ser independente: estávamos em 1994 e o que estava a dar era ser empreendedor. Começava a falar-se de internet. Eu mal sabia utilizar um computador. Mas achei que aquele era o negócio da minha geração. Vendi o meu carro. E com esse dinheiro criei uma produtora de software para a internet. Se eu fosse modesto não diria que foi uma das primeiras no mundo. Mas como talvez seja: não digo mesmo. Enfim, uma excentricidade tamanha: o historiador que afinal não o foi meteu-se a fazer uma empresa de software. E não foi por ininputabilidade que qualquer mestre da psique confirmaria que o espécime em questão estava consciente da sua inconsciência: para ele, o que fazia trabalhar essas máquinas chamadas de computadores era tão misterioso como a própria bruxaria.
Enfim. Passados 13 anos já me era insuportavel, a empresa. Voltei a achar que o problema era meu. Resolvi arejar a cabeça e fui fazer uma pós-graduação em negócios. A escola era das melhores da Europa e até do mundo. E a pós-graduação tinha uma designação muito pós-graduado, entre outras coisas chamava-se "de alta direção". E nem sei se aos meus colegas foi útil. Sei que a mim foi. E muito: percebi definitivamente que já não queria nada com essa maluquice de ser empresário. Enfim, alguns anos de vida por água abaixo que querer ser contra-corrente num país de correntes tem seus custos. Mas a culpa foi minha, claro, pois já tinha um bom histórico de rotundos falhanços: escritor falhado em puto, falhado mágico, impossivel treinador de grilos funambulistas, não falando no fracasso enquanto médico dos ditos, ou do Gonçalo Ramires de trazer por casa e do ex-futuro político... enfim, uma história que fala por si e que reforça as minhas culpas no cartório, pois que não se consiga à primeira ou à segunda tentativas, até é natural, mas tanto falhanço só mesmo por responsabilidade individual, nunca pela social. Reconheço-o, mas sem humildade, até com minha pontinha de orgulho..
E porque cada vida não esgota a vida: tive de arranjar outra. E mudei. Só ainda não sabia para o que estava a mudar. Mas estava a mudar. Isso estava. Nessa altura conheci uma gringa num desses sites de Web dita social. Dois meses a conversar online e meti-me num avião, eu. E meteu-se num avião, ela. Encontramo-nos em Miami Beach. Foi XXXXXXX:) enquanto durou. Mas claro, a gringa era muito gringa e passados cinco dias já não a conseguia aturar. E acredito que nem ela a mim. Mas a imodéstia não me permite aceitar esta ultima parte. Estávamos em Key West quando nos separamos. Uma estupidez: eu apenas lhe dissera que ela tinha uma cabecinha tal qual de um tal de Mr.Bush, que na altura era o maioral dum império que já não existe e de que talvez ainda vos lembreis, que alguns dizem que sim, que ainda existe mas que está apenas em vias de extinção, ou em reestruturação, conforme os que o dizem não gostam ou gostam de impérios do bem, que também há impérios dos outros, os do mal, que normalmente são os que este, que é o do bem, designa como maus. Uma afirmação que em si mesmo já quer dizer que os que assim os dizem, aos impérios maus, consideram que também pode haver bondade num império, o seu; enfim, pontos de vista.
Voltemos, isso sim, ao que interessa: por via da zanga com a dita gringa, lá estava eu, numa ilha que não conhecia e sem ter nada para fazer. Um autentico Robison Crousué, eu. Ou morria de tédio ou o tédio morria de mim. Tive de inventar alguma coisa para fazer. Enfim: lembrei-me que em putíssimo quisera ser escritor. E pensei que talvez já fosse suficientemente crescido para poder voltar a ser putíssimo. E desatei a escrever. E escrever é o que tenho vindo a fazer desde então. E ainda não parei. 
Não sei se fui claro.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Segredo d'alma

E eu também não recuo.
Mas é-me impossível saber,
o que encerrado estava,
nessa casa que se fechava.
E não é de não querer
que não posso o que quero.
É que esse sonho sonhado
é sonhado num sonho não meu.
O que era, Jacinta?
Que encerrava a casa?
O que era, Jacinta?

Mas agora noto.
E notando percebo:
há título nesse sonho.
Um sonho que é afinal
O sonho duma alma:
de até onde’alma levar;
levar aquela que sonha.
E eu sei. E eu sei.
Sei que por vezes é:
é até à própria alma
que a alma tem de levar.

E se assim é. Já coragem não tenho:
para perguntar.
Não traia o segredo de sua alma
aquela que alma sua viu.


Inspirado em: "Até onde a alma me levar I"

Esse eu do não eu

Do outro me revolto.
Do outro porque o outro
é o eu do não eu.
Mas se me revolto
dessa revolta do outro:
é por não aceitar
que o eu do não eu
é o não eu do eu.
E é assim q’a revolta
do eu contra o outro:
mais revolta não é
do que a d’eu contra eu.
Deste que não aceita
q’o abdicar do outro,
mais abdicar não seja
do q’o abdicar do eu.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Tudo-por-tudo

Há sete dias que não escrevo aqui.
Estou na fase tudo-por-tudo para terminar o próximo livro... e ainda não lhe arranjei título!
Prometo regressar :-)

domingo, 24 de maio de 2009


Vim para Braga.
Está bonito, o meu jardim.

O Fenómeno.

Aquele fenómeno foi um fenómeno nunca visto. Já tinham ocorrido fenómenos um bocado semelhantes. Mas apenas um bocado. E há que considerar que semelhante já é uma palavra sem sentido absoluto. É por isso que “semelhante” existe. Se assim não fora teríamos apenas o “igual” e o “cem por cento”. Igual para ser usado pelos poetas. Cem por cento para ser usado pelos matemáticos, pelos cientistas.

Mas o fenómeno que é este fenómeno nunca tinha acontecido. A única coisa que já ocorrera fora algo de um bocado parecido. E note-se que parecido é igual a semelhante. E se é a palavra que agora se usa é tão só para obedecer às regras da estética da língua que é esta língua: não ser repetitivo. Não ser repetitivo no que se diz. Não ser repetitivo no que se pensa. Não ser repetitivo nas palavras. Sobretudo isso: não ser repetitivo. Jamais ser repetitivo.
E era isso mesmo que este fenómeno não era: repetitivo. Nunca acontecera. E como nunca acontecera não podia sê-lo: repetitivo.

É certo que já haviam ocorrido movimentações. Movimentações de povos e culturas e civilizações. Isso já. Mas isto não: isto desta forma nunca acontecera. As movimentações levaram a instalações e a destruições. Os romanos fizeram isso: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os bárbaros: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os Zulus: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os Incas e os Maias e os caucasianos em geral: sobretudo os caucasianos em geral. Todos. Todos sem excepção. Todos se movimentaram e instalaram e destruíram o que estava.

Mas isto? Isto não. Isto nunca acontecera. E ninguém sabe explicar uma explicação para o porquê disto. Até porque isto aconteceu duma forma que ninguém esperava. Não foram os Estados que combinaram. Não foram os partidos que combinaram. Não foram Organizações Não Governamentais que combinaram. Nada! Nada mesmo. Absolutamente nada foi combinado.
Foi tudo repentino e sem planeamento. Mas aconteceu como se fosse tudo previsto e planeado. De repente. De repente as pessoas começaram a deslocar-se. E não foram as pessoas, pessoas. Foram as pessoas: países. Foram as pessoas: culturas. Foram as pessoas: civilizações. Todas. Todas começaram a deslocar-se. E sninguém consegue explicar uma explicação. E se ninguém consegue explicar uma explicação: é porque tudo foi espontâneo.

Espontâneo e repentino. Repentinamente. Repentinamente deixou de haver espanhóis em Espanha. Repentinamente deixou de haver portugueses em Portugal. E americanos na América e russos na Rússia e franceses na França e ingleses na Inglaterra, nem mesmo Sua Magestade. Todos os povos: de repente todos os povos deixaram de existir no território que até aí fora o território desses povos.

Desapareceram? Foram destruídos por outros que se movimentaram e instalaram? Não. E isso é o mais estranho. Os espanhóis, por exemplo: os espanhóis espalharam-se por todos os territórios excepto pelo território chamado Espanha. E os portugueses por todos os territórios excepto pelo território chamado Portugal. E os americanos e os chineses e os franceses e os indianos e os ingleses, até Sua Magestade que agora ocupa um apartamento de três assoalhadas no território conhecido como Tibete.

O que terá provocado isto? Ninguém sabe. Foi algo de tão espontâneo como espontâneo é o fetiche sexual dos salmões e das enguias e das andorinhas e das cegonhas. E porque foi assim espontâneo: os sociólogos não conseguem explicar o fenómeno. Talvez haja uma necessidade de mudança na espécie. Talvez. Talvez uma necessidade que ocorra em cada quarenta mil anos. Talvez. E talvez um dia os sociólogos sejam capazes de ter tudo muito bem estudado. Tudo sob uma matriz: uma explicação cabal: racional: científica. Talvez demorem anos. Talvez outros quarenta mil anos para descobrirem essa descoberta. E quando descobrirem: talvez outro fenómeno ocorra. Não este. Outro qualquer. Outro que venha a ser um fenómeno até aí nunca visto. Um fenómeno que venha a ser um bocado semelhante a outros fenómenos até aí entretanto ocorridos. E há que considerar que "semelhante" já é uma palavra sem sentido absoluto. E nesse dia os sociólogos ficarão novamente sem resposta.

Talvez seja isso. Talvez a espécie queira ser o que é: uma espécie. Nada para além duma espécie.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sunflower and butterfly

Who knows.
One day you'll be in a search-moment.
who knows.
One day I'll be in a search-moment.
And your search-moment will be.
And my search-moment will be.
Both search-moments will .
Will be simultaneous search-moments.
And when search-moments are simultaneous.
They are not just search-moments.
They are magic moments.
Sunflower and butterfly moments
When will I.
When will you.
When will we have such a magic moment?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Na Feira do Livro de Lisboa

Ontem estive na Feira do Livro de Lisboa. “Os Parricidas” foi o livro do dia no pavilhão da editora Civilização e portanto ontem foi dia de autógrafos.

Também aproveitei para regressar com mais uma dezena de livros. E gostei da feira.

O que mais me chamou a atenção não foram os livros e o público e os autores. O que mais me chamou a atenção foi o que pode parecer um pormenor. Não sei porquê: tenho esta tendência: reparar em pormenores. Mas como tenho a mania das grandezas faço-o vendo no que é aparentemente pequeno aquilo que o que é aparentemente pequeno tem de grande.

Uma rapariga. Estava a distribuir um papel. Um papelito. Um papelito escrito a preto sobre o branco. Estendeu-me um. Ainda tentei evitá-la: parecia-me o anúncio de mais um astrólogo ou quiromante ou adivinho. É possível que já ninguém repare nos papéis que os astrólogos e quiromantes e adivinhos nos deixam nos vidros e nas frinchas das portas dos carros. E sendo assim: os astrólogos e quiromantes e adivinhos poderiam estar a mudar de estratégia: poderiam estar a distribuir os seus papéis na feira do Livro de Lisboa. E foi com esta ideia que aceitei receber o papel que a rapariga me estendeu. E ainda eu o não tinha na minha mão e já com os olhos buscava o cesto de papéis mais próximo.

Ainda assim tive tempo de olhar para aquela folha branca com caracteres pretos.

E não: não era o papel dum astrólogo ou quiromante ou adivinho. Era um anúncio é verdade que era um anúncio. Um anúncio artesanal, é certo. Mas um anúncio. Começava com um “EVITE” à laia de título. E quando vi o “EVITE” do título: já eu estava novamente à procura do dito cesto de papéis. Depreendera que se seguiria qualquer coisa como “…a queda do cabelo” ou “…a fadiga sexual”.

Sorte que o cesto de papéis não estava próximo. E enquanto caminhava li instintivamente a linha que se seguia à do “EVITE”: “Evite que a arte de encadernação se extinga.” Parei. Aquela linha convenceu-me a ler a seguinte: “Que uma encadernadora seja fechada por falta de trabalho.” E desta para a seguinte: “Que três famílias acabem no desemprego.”

Agora eu já queria ler tudo o que faltava: “A encadernadora foi fundada em Agosto de 1.970 (assim mesmo: em Agosto de 1.970) por João F. Augusto. Hoje com 82 anos continua se esforçando pra levar em frente a arte de encadernação.” E depois: “Trabalhando com perfeição e honestidade fazemos encadernações simples a luxo e restauros.” Mudança de linha: uma só palavra: “AJUDE”. E prossegue: “Precisamos no mínimo mais 50 encadernações por mês pra manter a loja e funcionários. Colabore trazendo um livro para encadernar.”

Naquele momento eu já não estava na feira do Livro de Lisboa. À minha frente imaginava o Sr. João F. Augusto. Imaginava-os com oitenta e dois anos. E agarrado a livros que contam histórias ou que falam de filosofia ou que falam de ciência. Milhares de livros até aos 82 anos. Fiz contas de cabeça: o Sr. João F. Augusto teria perto de quarenta anos em 1970 quando abriu A Encadernadora. Quarenta anos. O que o terá feito mudar de vida? O que o terá feito largar o que estava a fazer e abrir a encadernadora? Que sonhos teria? Que realização prosseguia? E fê-lo: largou o que estava a fazer e abriu A Encadernadora.

Quantas pessoas terão levado os seus livros à A Encadernadora? Relíquias de família que queriam restaurar. Ou livros aos quais queriam dar nova dignidade. O que significariam esses livros para essas pessoas? Que memórias lhes trariam? E tudo isso ali: na oficina que o Sr. João F. Augusto fundou em Agosto de 1.970. assim mesmo como está: 1.970.

Para mim e agora o Sr. João F. Augusto já não era o Sr. João F. Augusto. Era uma metáfora: uma personagem. Um símbolo da voragem da história. Da autofagia com que nos consumimos: até ao tutano a consumirmos o outro: convencidos de que o nosso próprio tutano esteja a salvo. Não está!

É literatura pura o Sr. João F. Augusto. E a história que dele me veio lembrou-me um outro personagem: esse oleiro de A Caverna. Eu não sabia se o oleiro de Saramago existira ou não na realidade. Mas sim, ele existe. Se outro nome não tinha tem o de João F. Augusto.

E já agora, se tiverem livros para restaurar ou para dignificar: o Sr. João F. Augusto precisa de mais cinquenta encadernações por mês para manter a loja e os funcionários. E o Sr. João F. Augusto está em Lisboa na Rua Infantaria 16, nº 22. E tem telefone: 213855068. E tem até email. alpendrepintor@hotmail.com.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A casa de brincar.

Aquele espaço era um espaço para crianças. Era um espaço para ensinar. Mas era também um espaço para brincar. Aquele espaço estava dividido em várias áreas: cada uma destinava-se a uma diferente actividade. Numa dessas áreas: há um estaleiro: obras. É um estaleiro a brincar de obras a brincar: os tijolos são em esponja e servem para preencher as paredes da casa e o guindaste tem uma manivela que serve para que as crianças façam subir aqueles tijolos de brincar até ao piso de cima daquela obra de brincar.

As crianças. As crianças são umas duas dezenas. Algumas têm quatro anos e outras têm cinco e outras têm seis.

A obra é um caos. Aparente: aparentemente ninguém coordena o trabalho a fingir daquelas crianças. Mas não. Uma criança dá freneticamente à manivela do guindaste: faz subir tijolos em esponja que outros receberão e outros colocarão. Ninguém coordena as crianças. Ninguém. Mas os tijolos continuam a ser colocados no guindaste e a subir à plataforma e a ser retirados e a ser depois colocados nas paredes da casa.

Uma harmonia.

De vez em quando há disputas:

-“Quem dá à manivela sou eu!”
Ou:

-“Estes tijolos são meus!”

E das disputas sai sempre um resultado: ou continua quem estava ou fica quem entra. E a máquina continua a funcionar. A manivela roda independentemente de quem a roda. Os tijolos são colocados nas paredes independentemente de quem os coloca.

Saberão as crianças? Saberão as que disputam a manivela? Saberão as que disputam os tijolos? Saberão que tudo funciona independentemente de quem faz funcionar?

Algumas crianças parecem fora desta harmonia. Vagueiam por aquele estaleiro de brincadeira. Pegam nos tijolos de borracha tão só para os atirar ao ar. Quem serão estas crianças? Serão as desinseridas? Ou serão as únicas que sabem?
A máquina funciona independentemente de quem a faz funcionar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Bolachas de Araruta

Estava sem inspiração. Não me apetecia escrever, pronto: falta de inspiração é a forma sublime de preguiça. Ou de preguiça ou da vontade da mente em mudar. Vivemos do que à mente se oferece oferecer-nos. E a mente sabe disso. E como sabe: tem caprichos. Recusa-se a dar-nos aquilo que precisamos que ela nos dê. Recusa-se a menos que lhe demos aquilo que ela quer. E a minha quer mudança: está sempre a pedi-la. E como é mudança o que quer: é mudança o que tenho de lhe dar. Pelo menos se quero que ela me dê o que eu dela quero: letras unidas em palavras e palavras unidas em frases e frases unidas em ideias: livros.

Desta vez fui para o Gerês. Já estive neste hotel: uma quinzena com a minha avó. Teria eu seis anos? Por aí. O Hotel foi recuperado. Mas é o mesmo hotel. O mesmo apesar de já lhe terem dado diversos nomes. Foi Pensão Maia e ainda os nossos avós não tinham nascido. Depois fizeram-lhe obras e chamaram-lhe “Grande Hotel Maia” e já os nossos avós poderiam ter nascido. E agora fizeram-lhe mais obras e chamam-lhe “Hotel Águas do Gerês” e já os nossos filhos nasceram. Teve vários nomes, portanto: o pobre do hotel. Mas continua a ser o mesmo. Mudaram-lhe a cara e o aspecto mas a intimidade é a mesma. Felizmente que “Grande Hotel Maia” foi escrito sobre a pedra do edifício quando de Pensão Maia se fez Grande Hotel Maia. E por isso bem podem os idealizadores do Hotel Águas do Gerês chamar-lhe Hotel Águas do Gerês: o “eu” do hotel continua bem marcado. Porque de pensão Maia para Grande Hotel Maia: há apenas uma passagem da infância para a adolescência. Mas de “Grande Hotel Maia” para “Hotel Águas do Gerês”: poderia haver uma perda de identidade.

É estranho voltar ao hotel onde passei uma quinzena da minha infância. No actual espaço tento recriar o antigo. Vejo a recepção actual com os sentidos e com a mente reconstruo a velha recepção. Introduzo o cartão que me abre a porta do quarto e imagino o pesado porta-chaves de onde antigamente pendia a chave que abria essas mesmas portas. Entro e em vez da mobília em sucedâneos de madeira que agora lá está: vejo as duas camas de ferro que antes lá estavam. Talvez este seja até o quarto: aquele onde há tanto tempo fiquei com a minha avó. Lembro-me de que dava para a rua principal e lembro-me de que era no primeiro piso. E este quarto que é agora o meu quarto: dá para a rua principal e é no primeiro piso.

Dirijo-me à janela. Abro-a. De repente tudo recuou: mais de três décadas. E vejo um rapazinho que atravessa a estrada. E esse rapazinho sou eu. Fecho a janela. Saio do quarto. Escadas: quero ir pelas escadas. Recepção. Naquele tempo havia sofás em volta de mesas baixas. E os aquístas (era assim que lhes chamavam) reuniam-se em torno das mesas. E conversavam. E faziam jogos sociais.

Procuro um sofá. Sento-me. Tenho uma lembrança estúpida: não percebo porque vem e nem percebo ao que vem: bolachas de araruta! Bolachas de araruta? E agora sim. Agora já sei porque veio e ao que veio, a lembrança. A minha avó comia bolachas de araruta. Meu Deus! Bolachas de araruta. Bolachas de araruta é mesmo coisa de avó. Avó de quarentão, diga-se: que já nem as avós dos que são hoje adolescentes comem ou comeram bolachas de araruta. Acho que já nem se vendem, as bolachas de araruta. Pelo menos já nem me lembro de as ver.

Mas agora que estou aqui. Aqui neste hotel. Agora sim! Agora tenho uma súbita vontade de comer bolachas de araruta. Lembro-me bem delas e de como as comia. Eram triangulares e tinham as pontas levantadas e eram tostadas e duras dum lado e moles e carnudas do outro. E eu gostava de lhes comer primeiro a parte carnuda. E só depois a parte tostada. Bolachas de araruta. Apetecia-me tanto comer aqui e agora uma bolachinha de araruta!

E repentinamente percebo. Percebo algo que já intuira sem nunca ter percebido. Proust. “À la Recherche dum temps perdu”. A célebre passagem da madeleine:

Et tout d’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût, c’était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l’heure de la messe), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m’offrait après l’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La vue de la petite madeleine ne m’avait rien rappelé avant que je n’y eusse goûté; peut-être parce que, en ayant souvent aperçu depuis, sans en manger, sur les tablettes des pâtissiers, leur image avait quitté ces jours de Combray pour se lier à d’autres plus récents; peut-être parce que, de ces souvenirs abandonnés depuis si longtemps hors de la mémoire, rien ne survivait, tout s’était désagrégé; les formes - et celle aussi du petit coquillage de pâtisserie, si grassement sensuel sous son plissage sévère et dévot - s’étaient abolies, ou, ensommeillées, avaient perdu la force d’expansion qui leur eût permis de rejoindre la conscience. Mais, quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des autres, après la destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.”

Proust precisou da madeleine e da recordação da madeleine para perceber o significado da madeleine e da recordação da madeleine: da sua infância, do seu “eu”. E eu precisei da bolacha de araruta e da recordação da bolacha de araruta para perceber outra coisa: só percebemos depois de sentirmos. Já li Proust e nem sei quantas vezes já li esta passagem e já tinha intuído a sua importância. Mas percebê-la? Para a perceber tive de a sentir. E agora sim. Agora e graças a uma recordação de bolachas de araruta: sei o que Proust quis dizer e acho que sei até o que Proust sentiu.

É triste para quem escreve: só depois de vivida é que a vida se torna sentida.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O homem cão.

Um escritório. Mais ou menos quinze pessoas no mesmo espaço: mais ou menos quinze em mais ou menos quinze secretárias. Estão separadas por separadores, as secretárias: muralhas. Dentro de cada separador-muralha todas têm os mesmos artefactos: um ecrã e um teclado e um rato. E também uma ou outra manifestação de pessoalidade: uma foto dum filho ou dum namorado ou uma recordação de algo: um esquiço autobiográfico que seja capaz de lhes catapultar a memória dali para fora.

Num dos cantos há uma câmara. Não é oculta, a câmara. Se fosse oculta não cumpriria a sua função: fazer com que as mais ou menos quinze pessoas que ali trabalham saibam que a câmara lá está: uma espécie de suplemento à avaliação com que no final do ano saberão do prémio a que têm direito.

Lá fora há um jardim. Está vazio. Vazio excepto pelo rapaz e pelo cão que nele brincam. O rapaz tem uma bola amarela e atira-a e o cão vai buscá-la e trá-la e devolve-a. E quando cão devolve a bola ao rapaz: o rapaz dá-lhe uma ordem e o cão senta-se e depois o rapaz dá-lhe outra ordem e o cão deita-se. E se o cão se deita e se senta mal o rapaz lhe ordena que se sente e se deite: o rapaz volta a atirar a bola e o cão volta a ir buscá-la e a trazê-la e a sentar-se e a deitar-se. Mas quando o cão não se senta e não se deita assim que o rapaz lhe ordena que se sente e se deite: o rapaz não lhe atira imediatamente a bola e obriga-o a ficar mais tempo sentado e deitado. E é assim que quando o cão é canino: o cão recebe imediatamente o seu prémio em bola atirada. E é assim que quando o cão é humano: o cão tem de sofrer mais tempo sentado e deitado antes que receba o seu prémio em bola atirada.

Começa a chover no jardim onde está o rapaz e onde está o cão. Voltemos ao escritório.
O escritório está na mesma: as mais ou menos quinze pessoas nas mais ou menos quinze secretárias. As mais ou menos quinze pessoas com os mais ou menos quinze computadores. As mais ou menos quinze pessoas com os mais ou menos quinze separadores-muralha. As mais ou menos quinze pessoas com a câmara que as grava. A câmara que gravando-as contribui para a sua avaliação. A avaliação que avaliando-os contribui para o estabelecimento do prémio que irão receber no final do ano ou talvez a promoção, até.

Numa das secretárias está um homem. O homem é gordo e tem uma barba rala e a camisa branca e a gravata desapertada assim como desapertado está o ultimo botão da camisa branca. O homem tecla no teclado e olha para o ecrã e tecla no teclado e olha para o ecrã. É um teclar domesticado assim como é um olhar domesticado: das teclas para o ecrã e do ecrã para as teclas e novamente das teclas para o ecrã e novamente do ecrã para as teclas. Os olhos estão avermelhados. Não é um vermelho nervoso: é um vermelho de desânimo. E é com esse olhar de desânimo avermelhado que de vez em quando quebra o ciclo ecrã-teclas-ecrã. Quebra-o com uma mirada ao maço de cigarros que tem pousado sobre a secretária.

E a câmara continua na sua função: grava.

E lá fora já parou a chuva e já está sol e o rapaz do cão já está novamente a atirar a bola ao cão e a esperar que ele lha traga e a mandá-lo sentar e a mandá-lo deitar.

O homem do olhar de desânimo. O homem do olhar desânimo levantou-se.

E a câmara a gravar.

Num dos cantos da sala há uma impressora e o homem do olhar de desânimo dirige-se para a impressora. Agora que está em pé e caminha vê-se que tudo no homem de olhar de desânimo coincide com o olhar de desânimo do homem de olhar de desânimo: a gravata desapertada e a camisa aberta no último botão e os ombros caídos e o andar lentamente apressado. Tudo. Tudo no homem de olhar de desânimo está de acordo com o desânimo do seu olhar.

A impressora: a impressora regurgitou duas folhas. E o homem de olhar de desânimo já chegou à impressora. E já pegou na regurgitação. E já viu que as folhas estão pretas. E já as amaçou. E já as atirou para o cesto dos papéis. Foi sem expressão no rosto que o fez, para além da expressão que já lhe conhecemos: a de desânimo. E agora o homem de olhar de desânimo já voltou à sua secretária. E sem se sentar dobrou-se sobre o teclado. E no teclado repetiu uma ordem anteriormente dada. E a impressora retornou à regurgitação. E o homem de olhar de desânimo retornou à impressora. E retornado que está: já verificou que estas também saíram pretas. E já as amaçou. E já as atirou para o cesto de papéis. E já voltou à secretária. E já se dobrou sobre o teclado. E já repetiu a ordem. E já tudo se repetiu e repetiu e repetiu.

A câmara: essa continua a gravar.

Lá fora: lá fora chove novamente. E novamente o cão e o rapaz do cão pararam com a brincadeira de atirar a bola e já se abrigaram.

O homem de olhar de desânimo não sabe que lá fora já choveu e que já parou de chover e que já chove de novo: não reparou. Em vez de perder tempo a reparar: o homem de olhar de desânimo resolveu alterar a estratégia e está parado em frente da impressora e abre-a: verifica se há algum problema com o recipiente da tinta. E talvez agora haja, se antes não havia já: o recipiente teve uma espécie de espirro e a camisa do homem de olhar de desânimo está agora manchada de preto. A camisa e a gravata e até a cara. É certo que homem de olhar de desânimo deu um salto para trás quando a impressora espirrou: um reflexo desnecessário: apanhou em cheio com a espirração.

Manchado de preto o homem de olhar de desânimo caminha uma vez mais para a secretária. Daquele ângulo a câmara só o grava de costas. E porque só o grava de costas: os olhos que estão por detrás daquele olho ficam sem saber: o olhar do homem de olhar de desânimo já não é um olhar de desânimo. Nada disso: o olhar do homem de olhar de desânimo é agora um olhar de desespero. Mas porque a câmara não vê o olhar de desespero do homem de olhar de desânimo: os olhos que estão por detrás da câmara não despoletam qualquer sinal de alerta.

Agora sim. Agora os olhos por detrás da câmara já podem ver a atitude desesperada do homem que é habitualmente o homem olhar de desânimo. Mas já é tarde de mais. Agora já não há função profilática no registo que a câmara faz: agora o registo já tem meramente a função de registar. Regista a atitude do homem que tinha olhar de desânimo.

Um gesto do braço direito e o homem que tinha olhar de desânimo varreu o tampo da secretária: teclado e maço de cigarros e uma lata de salsichas reciclada a dizer “Ao melhor pai do mundo” e que estava cheia de lápis e de canetas e de clipes: já está tudo no chão. E agora o homem que tinha olhar de desânimo encara o ecrã. Encara-o já sem a postura de desânimo: os ombros não estão encolhidos mas abertos e as costas já não estão curvadas mas direitas e o olhar já não é vermelho de desânimo mas vermelho de desespero. E as mãos: as mãos dirigem-se ao ecrã e puxam-no e ao puxá-lo arrancam-lhe os fios que umbilicalmente o ligavam à inteligência central.

E a câmara continua a gravar.

E lá fora não sabemos o que está a acontecer com o cão e o rapaz do cão. Não sabemos e nem queremos saber. Não agora: agora que o clímax é cá dentro.

Junto à impressora há outra máquina: uma fotocopiadora. E é para a fotocopiadora que o homem que tinha olhar de desânimo segue com o ecrã nas mãos. Se olhássemos para o olhar do homem que tinha olhar de desânimo e se depois olhássemos para o ecrã que o homem que tinha olhar de desânimo traz nas mãos: estranharíamos porque o monitor não sangra.

No escritório todos os colegas do homem que tinha olhar de desânimo se levantam. E olham para ele. E agora que o homem que tinha olhar de desânimo está junto à fotocopiadora: todos os que olham para o homem que tinha olhar de desânimo estão de frente para a câmara.

E a câmara continua a gravar.

E como a câmara continua a gravar: a câmara grava o olhar de todos os que olham para o homem que tinha olhar de desânimo. E nesse olhar que é agora de surpresa adivinha-se um olhar que era antes de desânimo: um desânimo fossilizado mesmo quando é momentaneamente substituído por surpresa.

O homem que tinha olhar de desânimo. O homem que tinha olhar de desânimo sente-se observado por aqueles mais ou menos vinte e oito olhos. Esses mais ou menos vinte e oito olhos que o olham com um momentâneo olhar de surpresa. E o homem que tinha olhar de desânimo volta-se para eles. E fita-os: o olhar de desespero do homem que tinha olhar de desânimo é agora olhar de raiva. E todos sentem a raiva daquele olhar. E todos regressam ao ar de desânimo. E todos se sentam. Sentam-se como se nada se passasse: atendem os telefones e teclam as teclas e miram os ecrãs. E o homem que tinha olhar de desânimo já perdeu o olhar de raiva e está a perder o olhar de desespero e está lentamente a voltar a para o olhar que lhe deu nome. Mas o desespero ainda é suficiente para que abra a tampa da fotocopiadora e lhe coloque o monitor ensanguentado em cima e para que carregue na tecla “Copiar”. É várias vezes que carrega nessa tecla: primeiro com um murro e depois com brusquidão e depois suavemente, duas vezes suavemente. E conforme passa do murro com que carregou para o suavemente com que está a carregar: o homem perde o olhar de raiva e passa para o olhar de desespero e finalmente regressa ao olhar que é o seu olhar: o olhar de desânimo.

O homem do olhar de desânimo olha à volta de si. Olha à volta de si como se olhasse para si: como se caísse em si. Os colegas continuam a trabalhar: viram-lhe o olhar de raiva e por isso trabalham como se nada se passasse. E o homem de olhar de desânimo já caiu em si: já dobrou a coluna e já encolheu os ombros e até já ajeitou a gravata. Agora levanta os olhos. Levanta-os para o canto onde a câmara grava tudo. O homem de olhar de desânimo sabe isso mesmo: sabe que a câmara grava tudo. Gravou-o antes assim como o grava agora: grava-o também agora que tem aquele olhar de desânimo e aquele ar ridículo com a camisa e a gravata e a cara manchados com o preto espirrado pela impressora. Ficou tudo registado: tudo.

O homem pega no monitor. Regressa ao seu lugar. Apanha os lápis que espalhara pelo chão. Mete-os dentro da lata de salsichas reciclada a dizer “Ao melhor pai do mundo”. Antes de pousar a lata sobre a secretária lê-a: um ténue sorriso. Apanha o teclado que também atirara para o chão. Pega nos fios do ecrã. Põe-se de joelhos: é de joelhos que tem de se pôr para se voltar a ligar à inteligência central. Senta-se. Um suspiro. Retoma o trabalho. O homem de olhar desanimado já retomou o trabalho.

A câmara. A câmara continua a sua função: grava. A câmara sabe que o homem de olhar de desânimo lá está. E o homem de olhar de desânimo sabe que a câmara lá está. E o homem trabalha: com afinco. E olha para a lata de salsichas a dizer “Ao melhor pai do mundo”. E continua a trabalhar com afinco. O homem de olhar de desânimo quer fazer tudo para que no final do ano a câmara se esqueça daquilo que a câmara acaba de gravar.

Lá fora. Lá fora voltou o sol. E o rapaz do cão continua a atirar a bola para que o cão a busque. Mas é só quando o cão se senta e se deita quando ele lhe diz que se sente e se deite. É só quando assim se comporta o cão que o rapaz do cão atira a bola para que o cão a busque.

E a câmara grava. E a câmara grava.
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Inspirado num vídeo que recebi:

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Inconsciência de "não ser"

Podemos recuar a mais do que Freud para tirar uma conclusão: há muito tempo que procuramos no inconsciente a fonte do mal-estar de cada ser humano. Será que o nosso problema é o que temos de inconsciente ou o que temos de consciente? Que conste, o que não tem consciência de ser, não tem também consciência de não ser. E já houve quem dissesse que a questão está aí: no conflito entre ser e não ser.
Talvez fosse altura de virarmos as ciências da psique de pernas para o ar: mudar o actor que faz o papel de vilão.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A formiga.

Ontem fartei-me. Fartei-me do escritório e das prateleiras do escritório e do computador no escritório. Desliguei-o. Trouxe-o para a sala. Trouxe também alguns papéis. E é como se tivesse mudado de continente. Estou a trabalhar na sala. Até que me farte da sala. E faça as pazes com o escritório. Ou mude mesmo de continente. Mas quando mudei do escritório para a sala houve quem tivesse mudado comigo: uma formiga. É preta e ontem reparei nela sobre o branco dos papéis que viajaram comigo na mudança. Depois fartei-me do trabalho. E mudei de tarefa. E saí. E fui jantar. E encontrei gente. E conversei. E regressei. E deitei-me. E dormi. E hoje acordei. E arranjei-me. E voltei à sala. E voltei a ligar o computador.
Tanta coisa apenas entre ontem e hoje. Um universo de coisas. E agora reparo nela: na formiga. Continua em cima dos papéis da mesa da sala. Esses papéis que na minha indisposição transferi com a formiga do escritório para a sala. Parece desorientada, ela. Percorre os papéis e depois percorre a mesa e depois percorre os papéis e depois pára sobre as letras como se o preto das letras fosse o preto das outras formigas. E quando percebe que o preto das letras não é o preto de outras formigas: volta a caminhar: papeis, mesa, papeis. Sempre a caminhar. Está sozinha, a formiga.
A minha mudança do escritório para a sala foi a metáfora duma mudança de continente. Será a formiga uma metáfora de nós, de mim?

quarta-feira, 25 de março de 2009

A circularidade do círculo

Há dias conheci um embaixador. Está em final de carreira. “A falta de grandes objectivos diplomáticos nacionais está a provocar alcoolismo nas nossas embaixadas”, diz. Será que estamos condenados a caminhar desta forma? Enganarmo-nos a nós próprios e depois sermos vencidos pela vida? Ele pertenceu à geração que acreditou na via europeia. Está desiludido, claro. Hoje é óbvio: mais uma oportunidade perdida. Naquele tempo não era. A geração anterior acreditara na via colonial. Acabou desiludida, claro: também perdeu a sua oportunidade. E eu não fujo à regra. Tenho de me enganar a mim próprio: sou cada vez mais atlântico. Não quero pertencer a nenhum continente. Quero pertencer a um oceano. Não quero ser da terra. Quero ser do mar. Portugal e Angola e Brasil e cabo Verde e Guiné. Que bonito que é. Um dia vou acabar desiludido, claro. Mas para já é agradável essa sensação de me estar a enganar a mim mesmo.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Sou laico. Escrevi-o. E é verdade, se é que a verdade é. Mas às vezes vou à missa. É raro. Mas embora raro, acontece. Não sei porquê. Não sei e nem quero e nem preciso e nem devo saber. Apetece-me, apenas. Devemos guardar algum mistério de nós próprios. Devemos guardá-lo até desse personagem que julgamos nosso e a quem chamamos “eu”. E assim quando esse “eu” fica insuportável tem sempre recursos que desconhecia ter. Recursos que eram um mistério de si sobre si. E é talvez por isso que de vez em quando vou continuar a ir, à missa. E é de certeza por isso que vou continuar sem saber porquê. E que vai continuar a ser verdade que sou laico. Se é que a verdade é.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Preservatismos

O Estado é laico. Ainda bem. A religião não deve interferir nos assuntos de Estado. Ainda bem. Eu e os outros agnósticos deviamos perceber qual é a contrapartida para a laicidade da coisa pública: a religião também fica independente do Estado e o Estado não deve interferir nos assuntos da religião. Deviamos perceber, deviamos.

O Sumo Pontífice dos católicos tem pleno direito de ver as coisas de acordo com a fé que é a sua. Obrigação até, julgo eu. Em alguns aspectos essa visão coincide com a minha. Em alguns aspectos não coincide. Sou-lhe indiferente, na maioria dos aspectos.
No que respeita às tecnologias de contracepção, não sou indiferente. Estou nas antípodas. E tenho esse direito legal: vivo num sistema em que o Estado é laico.

Mas é porque os Estados são Laicos que César não deve interferir naquilo que não é de César. Falo de César ele mesmo: do Estado e dos seus diversificadissimos departamentos. Não falo do cidadão: esse pode meter-se com quem quiser. E se César é laico: César não deve interferir nas questões de fé. Mas interferiu. Está mal. Amanhã alguém da hierarquia católica vai interferir com César. É fatal. Está sempre a acontecer e porque está sempre a acontecer: acontecerá. E César vai queixar-se. E terá razão em queixar-se.

quinta-feira, 19 de março de 2009

A CLOSE FARWELL

In this farewell
I find a close well
So far is the edge
So close is the fate

Find your edge.
I’ll be looking for mine.
More and more find your edge.
More and more I’ll look for mine.
And, who knows:
One day you will find;
One day I will find

The edge is not the destiny;
The path is not the destiny;
The carried stone is.

And who knows you will find;
And who knows I will find:
You are pushing a stone,
and the stone you push
is the very same stone I pull

And being your pushed stone.
And being my pulled stone.
The stone will not be a stone.
But fingers,
fingers tips,
fingers extremities.
And also fingers bases: hands

Hands with fingers
Fingers with hands
Hands to hands
Fingers to fingers.

And the colors will mix
And the canvas will be there
And the picture will happen

Carry the stone.
Once and once carry your stone.
I will pull mine.
Once and once I will pull mine.

And the time was there.
And the time is there
And the time will be there.
Who knows where will it be?
But it will be!

segunda-feira, 16 de março de 2009

A propósito de "O Mandarim", de Eça de Queirós.

Acabo de reler “O Mandarim”. Quem “acusa” Eça de ser um escritor realista devia prestar mais atenção a esta obra.

A partir da segunda edição, o conto passou a incluir a “Lettre que aurait du être une préface”: uma carta que o escritor enviou ao Redactor da francesa “Revue Universelle”: “Vou voullez, Monsieur, donner aux lecteurs de la Revue Universelle une idée du mouvement littéraire contemporain en Portugal, et vous me faites l’honneur de choisir Mandarim, un conte fantaisiste et fantastique, où l’on voit encore, comme au bon vieux temps, apparaître le diable”.

Nesta releitura achei curiosa a preocupação que Eça aqui demonstra. Desde logo porque eu próprio acabo de lançar um romance, “Os Parricidas”, onde o Dito diabo faz as suas apariçõezinhas, naturalmente que com bastante menos mestria do que aquelas que fez em “O Mandarim”… desculpe-se o meu ilustre personagem: que conste, Diabo, Diabo, a haver, que o há, é só um. E por isso as diferenças estão, neste caso, nos desníveis do génio de quem o descreve e não no personagem em si mesmo.

Mas, não levemos o meu egocentrismo ao ponto de me fazer crer que foi esta coincidência que mais me atraiu na referida carta. Não é que eu o renegue, ao egocentrismo: renegá-lo será talvez, para qualquer pessoa, colocar-se num estado de harmonia tão grande com o cosmos que seria, em si mesmo, uma arrogância. Especificando: a fórmula máxima de pôr o “Eu” nos píncaros.

Adiante.

Curioso, curioso, é o facto de Eça como que pedir desculpa por ter escrito uma obra onde surge a figura mitológica do Diabo. E percebe-se que essa desculpa se fundamenta num sentido de responsabilidade para com os seus pares portugueses. Afinal, “O Mandarim” tinha sido escolhido pela revista para ilustrar a literatura que à época se fazia em Portugal. E “O Mandarim”, com o seu pendor fantástico, não era, de forma alguma, o tipo de literatura por que Eça e os seus pares da geração de 70 pugnaram.

Netos da “Luzes” setecentistas e filhos do positivismo oitocentista, os escritores da época procuraram transferir o laboratório para as páginas dos seus romances. É o próprio Eça quem o afirma quando, na referida carta, diz que “hoje toda a nossa juventude literária, e até alguns dos mais velhos, escapados do romantismo…” se entregam “…pacientemente ao estudo da natureza…” e fazem “…constantes esforços para inserir nos livros o máximo de realidade viva”. Não obstante, diz, “aqui, neste canto ensoalhado do mundo, nós continuamos a ser muito idealistas no fundo e muito líricos.” Mas “Isto não podia continuar, principalmente depois que a evolução naturalista triunfou em França, e a direcção das ideias, no que tocava à arte, parecia dever ficar nas mãos da ciência experimental”. E é precisamente neste movimento que me atrevo a chamar de Literatura de laboratório que (não obstante “O Mandarim”)Eça se quer ver incluído: “Contudo, mesmo antes do naturalismo, entre nós, já alguns jovens espíritos tinham compreendido que a literatura de um país não podia ficar para sempre alheia ao mundo real”. Para concluir (note-se que na primeira pessoa do plural) que: “Impusemo-nos, pois, corajosamente o dever de jamais olhar o céu – mas a rua”.

O incómodo de Eça é compreensível. Antero, Teófilo Braga, Oliveira Martins, enfim, tanto os que directamente estiveram na origem da “Questão Coimbrã”, como os que foram por ela originados, dificilmente lhe desculpariam que “O Mandarim” fosse considerado em França (e logo em França!) como um exemplo da literatura contemporânea portuguesa.

Julgo que daí a razão de ser desta carta. Uma carta que é uma espécie de desculpabilização. Que é um como que dizer: eu sou um homem dos tempos modernos. Eu sou um naturalista. Eu sei que a literatura é uma arma de combate e não uma espécie de recurso onírico. Eu sou e eu sei isso tudo. Mas apesar de tudo o que sou e sei, por vezes não consigo deixar de ser português: “neste meio real, contemporâneo, banal, o artista português, habituado às belas incursões através do ideal, asfixiava; e, se por vezes não pudesse fazer uma escapadela até ao azul, bem depressa ele morreria da nostalgia da quimera.” E então “pelo menos durante um pequeno volume, já não se suporta a incómoda submissão à verdade, a tortura da análise, a impertinente tirania da realidade.” Acto de contrição feito: “escrita a ultima folha, corrigida a ultima prova, abandona-se a rua, volta-se ao passeio e retoma-se o estudo severo do homem e da sua miséria externa. Contente? Não senhor, resignado.”

Compreende-se. Eça e os seus são netos das luzes setecentistas e são filhos do empirismo oitocentista. Esse mesmo empirismo que tinha a razão, a experiência, o experimentalismo e o laboratório como sustentáculos. Filhos desse século XIX que procurou abolir qualquer causalidade que não fosse material. Que vivia obcecado por explicar tudo cientificamente. Tão obcecado que já não se contentava em explicar cientificamente: queria agir cientificamente. De tal forma obcecado que a única ideologia que gerou (o socialismo que se disse científico) elevou a Ciência a fonte de legitimidade política. Tão obcecado que acreditou que qualquer homem seria bom desde que ilustrado por uma espécie de racionalidade científica: essa mesma crença (e sublinho o termo crença pela contradição que implica) que fez com que um génio como Freud tivesse procurado uma glândula do comportamento, ou duas, já que em homens como em mulheres a dita glândula é, regra geral mas com excepções, um par de glândulas.

E é por isso que Eça quase pede desculpa por ter escrito “O mandarim”: por ter supostamente sido influenciado pelo passado.

Mas Eça não sabia. Não sabia e nem podia saber. Enquanto escrevia a “lettre que aurait du être une préface”, Eça não sabia que vinte e oito anos depois Kafka viria a escrever “A Metamorfose”. Que trinta e quatro anos depois essa mesma ciência que supostamente levaria a um homem bom, possibilitou, isso sim, a guerra mais sangrenta que a humanidade conhecera. Enquanto escrevia a “lettre que aurait du être une préface”, Eça não sabia que Virginia Woolf nascera dois anos antes. Assim como não sabia que trinta anos depois James Joyce começaria a escrever “Ulisses”. E que dentro de oitenta e três anos Gabriel Garcia Marquez publicaria “Cem anos de Solidão”. E que quase cem anos depois um português como ele, José Saramago, escreveria “O Homem Duplicado”.

Eça não podia saber nada disto. Mas em “O Mandarim” parece adivinhar tudo. E é por isso que acho curioso aquilo que faz na carta ao Redactor da “Revue Univverselle”: como que pede desculpa pelo pecadozinho de ter sido influenciado pelo passado. Influenciado sim. Mas Eça não sabia pelo quê: afinal em “O Mandarim” estava influenciado pelo futuro. E essa é a característica mor dos génios: serem influenciados pelo futuro.
Claro que, a rematar, e sem desprimor, não posso deixar de referir que em 1890 Oscar Wilde publicou "The Picture of Dorian Gray", um livro onde o realismo já é mágico. E digo "sem desprimor" porque não podemos confundir "património literário da humanidade" com "património literário da língua portuguesa".

Concluindo:“O Mandarim”: um pequeno conto de José Maria Eça de Queirós: a minha leitura favorita, de entre todas as que o génio nos proporciona.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Ainda a propósito da onda de censura

Nilson Barcelii do Blog Nimbypolis, que eu sigo com interesse e que faz o favor de me seguir, comentou o meu artigo “Já vi coisas piores começarem melhor” onde falo do estranho aparecimento duma onda de censura. Fi-lo a propósito de dois casos recentes que são sobejamente conhecidos: a apreensão do livro “Pornocracia” pela Polícia de Segurança Pública de Braga e a proibição seguida de desproibição do desfile do computador Magalhães no carnaval de Torres Vedras.

O comentário de Nilson foi o seguinte: “É lamentável, mas julgo não ser preocupante, já que não há nenhuma campanha de censura em curso...”

Talvez graças a este comentário fiquei mais atento ao tema. E já não me refiro ao caso português. No que toca a tendências temos de estar sempre mais atentos à famigerada globalização do que a casos nacionais. E globalmente os sinais não são assim tão desinquietantes.

Notícia 1: o jornalista paquistanês Syed Pervez Kambakhsh viu a sua condenação à morte comutada em vinte anos de prisão. Motivo: blasfémia. A blasfémia: debateu online o artigo duma iraniana residente na Europa. O tema do artigo: a falta de direitos da mulher afegã.

Um exotismo afegão, poderá dizer-se. Mas estamos a falar do mesmo Afeganistão cujo regime é suportado por tropas ocidentais, incluindo portuguesas. Chocou-me ainda a leveza do protesto da organização “Repórteres sem Fronteiras” que se limitou a um singelo pedido ao governo afegão para que altere a lei aplicada à basfémia, isto segundo o “Diário de Notícias” de hoje.

Notícia 2: Geórgia decidiu que já não vai à Eurovisão. A organização exigira que este país nomeasse um novo representante ou apresentasse uma nova canção. A canção: “We don’t wanna put in” dos Stephanie&3G. Um título interpretado (e bem) como sendo uma crítica ao primeiro-ministro russo, Vladimir Putin que, como é sabido, governa um país onde a liberdade de imprensa é cada vez mais aquilo que é. E desta vez nem sequer valeu aos interpretes a forma velada com que abordaram a questão. Os censores de Salazar podiam ser ignorantes e deixar passar Carlos Marques por Karl Marx. Os censores da Eurovisão não padecem da mesma ignorância “put in” é Putin.

E agora um artigo que é mais do que a cereja no topo do bolo: o artigo é de Neal Rosendorf e está publicado na “American Interest” de Março. O título: Popaganda. O subtítulo: What can Hollywood do for (and to) China. O tema: o governo de Pequim está muito triste porque não consegue produzir cinema capaz de promover o país. Uma tristeza que terá evoluído para depressão, após constatarem que Hollywood produziu mais um êxito de bilheteira com a história de animação Kung Fu Panda. Perante este êxito, as autoridades de Pequim questionavam-se sobre o porquê dos chineses não terem eles próprios sido capazes de produzir aquele aquele filme. Um filme que, afinal, é todo ele baseado na iconografia chinesa, a começar pelo próprio panda.

Preocupadas, as autoridades decidiram incumbir um comité de estudar o assunto e apresentar propostas. E o comité chegou a uma conclusão: Pequim deverá diminuir o controle sobre a industria cinematográfica, por forma a permitir uma maior liberdade criativa e, assim, ser capaz de produzir filmes que expandam pelo mundo os valores da cultura chinesa.

Não me vou pronunciar sobre a contradição entre o dirigismo patente no objectivo e a ideia de dar maior liberdade aos cineastas. Independentemente disso, é positivo que um regime fechado como o de Pequim comece a pensar duma forma que se pode resumir no seguinte aforismo: não há criatividade sem liberdade de expressão.

O que me indigna é que Neal Rosendorf, o citado autor do citado artigo, defenda o que aí defendeu.

O que defendeu Neal Rosendorf: que a China não conseguirá utilizar o cinema como máquina de propaganda a menos que incentive a implantação dum estúdio permanente de Hollywood em território chinês. E porquê? Primeiro porque Hollywood sabe fazê-lo melhor do que ninguém. E depois porque a propaganda feita por estrangeiros é mais credível do que a propaganda feita por chineses.

Sórdido é o exemplo que dá: o de Samuel Bronston que entre 1950 e 1964 teve apoio da ditadura de Franco para instalar um estúdio em Madrid. E Neal Rosendorf explica a vantagem: anteriormente o regime franquista tentara apoiar a produção nacional de grandes épicos de pendor nacionalista. Procurava com isso ultrapassar o isolamento internacional e promover os putativos valores espanhóis. Procurar procurava, mas sem êxito: fora de Espanha os filmes eram estrondosos fracassos.

A instalação dos estúdios de Samuel Bronston em Madrid alterou o panorama e grandes produções internacionais passaram a ser feitas em Espanha. Claro que, para isso, submetendo-se à censura do ditador, o que Rosendorf não oculta e, inclusive, dá como exemplo às autoridades chinesas sobre o que poderia ser feito.

Por fim o mais obscuro: Rosendorf alerta para que de forma alguma as autoridades chinesas deverão apoiar directamente este projecto, pois isso desacreditá-lo-ia e, assim, a propaganda não teria efeito. Mas Rosendorf vai lembrando que, se pelas mesma razões, Franco não apoiou directamente Samuel Bronston, arranjou formas indirectas de o fazer “with imaginative covert funding schemes that included oil and other products import licenses, which gave Bronston access to millions of dollars as an importation middle man.”

Já sabíamos que o Google aceita censurar o acesso a páginas incómodas ao regime para pesquisas feitas a partir da China. Agora sabemos que Hollywood está a preparar-se para se vender aos ditadores de Pequim como gigantesca máquina de propaganda e, em troca do respectivo apoio, aceitar as respectivas contrapartidas: em censura. E sabemo-lo porque, obviamente, um artigo como este tem um objectivo, uma origem e um destino.

Pior do que censura: vender a alma ao censor.

Valha-nos Spielberg que se recusou a organizar a cerimónia de arranque dos últimos Jogos Olímpicos devido à repressão no Tibete.